Como dito no post anterior, haviam aproximadamente 84 aldeias tupinambás as margens da Baía de Guanabara e no interior da cidade do rio de Janeiro. Nesse post falaremos das principais aldeias tupinambás que ficavam na margem esquerda da Baía já que as de fundo e as da margem direita, correspondem respectivamente a áreas da baixada Fluminense e Niteroi.
Tabas na costa do lado esquerdo
Karióka, a casa dos Cariós
A taba mais famosa do Brasil passou seu nome para o povo de toda uma cidade. O nome “carioca”, adotado com tanto carinho pelos moradores do Rio ao longo dos séculos é originalmente o nome de uma das mais importantes aldeias tupinambás do Rio de Janeiro, a aldeia Karióka, a casa dos carijós ou casa de branco (contróversias que serão explicadas em outro post), muito visitada pelos primeiros navegantes e aventureiros europeus. Ela se localizava próximo à foz do rio que herdou o nome da comunidade tupinambá que habitava suas margens – rio Carioca, que ainda resiste e pode ser visto no bairro no bairro do Cosme velho junto ao Largo do Boticário.
Suas terras ficavam onde hoje estão os bairros do Flamengo, Laranjeiras, Largo do Machado, Catete e Glória. Especula-se que ficava à direita da segunda foz do rio Carioca. Esse rio dividia-se em dois na altura do atual Largo do Machado. Um curso deu origem à atual rua do Catete e desaguava ao redor do atual morro do Outeiro da Glória, e outro seguia em linha reta. A taba da Karióka, com suas gigantescas malocas com mais de duzentas pessoas tinha como um dos chefes o morubixaba Iapiró-ijúb, Possivelmente esse líder tupinambá foi um dos primeiros a entrar em contato com os pioneiros europeus que chegaram aqui.
A taba da Karióka era a primeira a ser avistada assim que as naus entravam na barra da Baía de Guanabara e prestou relevantes serviços aos primeiros exploradores e navegantes. As ygaras (canoas) acorriam ao encontro das naus com peixes, farinhas, frutas e mantimentos em geral, interessados nas novidades que os europeus traziam – principalmente facas, machados e anzóis.
Para chegar ao riacho de águas transparentes da aldeia Karióka, percorria-se de canoa a torrente, passando por manguezais e pequenas lagoas. A viagem seguia por mais alguns minutos até os terrenos mais elevados onde começava uma trilha que entrava pela mata e, em algumas partes, era preciso subir entre raízes e pedras.
Essa histórica taba ancestral do Rio de Janeiro foi uma das aldeias atacadas pelos esquadrões portugueses de Mem de Sá e os maracajás de Araryboîa, quando da tomada do forte Coligny em 1560. A posição desta aldeia era estratégica, pois ficava logo após a entrada da baía. Foi certamente uma das comunidades tupinambás que mais suporte propiciou aos homens de Villegagnon durante a construção do forte na ilha de Seregipe. Foi também na área da aldeia Karióka que ocorreu a mais importante das batalhas pelo domínio da Guanabara, aquela liderada por Uruçumirĩ.
Gûyragûasu’unaê, a aldeia da harpia
O nome da taba de Gûyragûasu’unaê é a segunda a ser identificada no grupo de aldeias que ocupavam o litoral da margem esquerda da baía. Pela posição estava justamente entre as aldeias Karióka e Jabebiracica (taba que dominava os rios da Tijuca) Era a aldeia que dominava as terras do atual centro da cidade.
A aldeia ficava próxima ao litoral nos arredores do morro do Castelo, para onde a cidade seria transferida definitivamente por Mem de Sá em 1567. Toda essa região era guarnecida de lagoas, como as fontes de água que existiam nos atuais lugares do Largo da Carioca e no Passeio Público. Além disso, a partir da atual avenida Presidente Vargas, na altura da Cidade Nova, havia um grande manguezal onde uma série de rios desaguava antes de rumar para a foz na Baía de Guanabara, pela enseada de São Cristóvão (atual Canal do Mangue). Não era uma área propícia à habitação por causa das cheias das marés e dos rios.
As aldeias eram interligadas por antigos peabirus, caminhos ancestrais que depois foram aproveitados pelos portugueses nos primeiros anos da cidade. Haviam vários peabirus que partiam do entorno do morro do Castelo. O primeiro começava entre lagoas em direção ao atual bairro da Lapa, onde se bifurcava, por um lado, para a Karióka e, por outro, seguia em direção à Tijuca, onde estavam as terras de Jabebiracica. Havia também outro peabiru que ligava exclusivamente as tabas de Gûyragûasu’unaê e Jabebiracica. Esses dois caminhos seriam hoje comparáveis aos atuais trechos da rua Riachuelo e da rua da Alfândega que se encontram nas proximidades da avenida Presidente Vargas. A presença desses caminhos antigos atesta sem sombra de dúvidas que Gûyragûaçu’unaê tinha laços profundos de parentesco e solidariedade com as tabas vizinhas. Assim como também nos ajuda a compreender as rotas de deslocamento das primeiras populações que aqui viviam.
Gûyragûasu’unaê seria, dessa forma, uma das tabas mais importantes do Rio de Janeiro nos anos anteriores à fundação oficial da cidade. A clareira de sua okara estava nas terras onde a cidade efetivamente começou a partir de 1567 e tinha como porto o litoral da antiga “praia do centro”, onde hoje está a Praça XV. Escavações arqueológicas modernas realizadas na Igreja de Nossa Senhora do Carmo, conhecida como a “Antiga Sé” do centro da cidade, revelaram que ela foi construída sobre uma antiga aldeia indígena. Supomos que sejam os escombros justamente de Gûyrágûasu’unaê. Assim como os colonizadores espanhóis, os portugueses também erguiam seus templos sobre as aldeias e os cemitérios indígenas como uma forma de apagar o passado.
A ave que os tupinambás admiravam sobremaneira e que chamavam de gûyragûaçu era uma ave de rapina poderosa, cujas garras eles usavam para as cerimônias de bons presságios dos meninos recém-nascidos. A envergadura da gûyragûsuúna podia chegar a 2,5 metros. Águia típica da Mata Atlântica, hoje em extinção, é também conhecida por gavião-real, gavião-de-penacho, uiruuetê e uiraçu. A harpia é rápida e potente em suas investidas, capaz de erguer uma ovelha sem maiores dificuldades. Ela voa alternando batidas de asa com planeio. Comunica-se logo ao amanhecer com um assobio longo e estridente que despertava as aldeias. O povo de Gûyrágûasu’unaê resistiu enquanto aldeia até o ano de 1638 quando suas terras foram tomadas.
Jabebiracica, “a aldeia maracanã”
Jabebiracica era uma das mais importantes tabas tupinambás da Guanabara. A îabebyra era como se chamava um peixe cartilaginoso que todos nós conhecemos hoje por arraia ou raia. A arraia era tão estimada pelos tupinambás que eles chegavam ao ponto de chamar-se com seu nome. A îabebyra, ou a arraia, possui características almejadas pelos grandes guerreiros tupinambás. Já o termo asyka significa, literalmente, cortada, cotó. Pela etimologia da palavra o nome quer dizer arraia-cortada, que devia ser como era chamado um determinado tipo de arraia muito comum na época. Essa comunidade durante anos dominou as terras e florestas que iam das margens do rio Comprido até as terras do atual bairro de São Cristóvão. A localização dessa aldeia ancestral dos nativos da Guanabara ficava nas áreas do lado direito da praia da enseada, chamada no século XVIII de Saco de São Cristóvão, praia de areias curtas, linda e pitoresca, hoje completamente aterrada pelo porto da cidade. Tinha início nas proximidades da atual rodoviária Novo Rio, indo daquela ponta onde existia um extenso manguezal por onde a foz do rio Comprido passava. A taba de Jabebiracica servia-se de boa parte da praia dessa enseada, permanecendo nas terras que seguiam o curso do atual rio Comprido e seus afluentes. Certamente ocupou as melhores áreas de parte da zona Norte ao longo dos anos, sempre procurando uma posição equidistante entre a praia e o curso dos rios da região a partir dos bairros do Rio Comprido, Tijuca, Maracanã e São Cristóvão.
Sua localização permitia amplo domínio do porto e era o ponto de partida para a exploração das terras para o interior do continente. Perto dali partiam alguns peabirus, entre eles os caminhos para o planalto de São Paulo e para as serras de Minas Gerais. Jabebiracica era também um elemento central no complexo sistema de relações e solidariedade entre tabas da Guanabara, ponto de comunicação e encontro, assim como para o comércio de pau-brasil e outros produtos com os europeus. Ali era um dos locais de estocagem das toras de pau-brasil enquanto os nativos aguardavam a chegada de novos navios dos
Jabebiracica deve ter fornecido parte da mão de obra responsável pelas construções do forte dos franceses na ilha de Villegagnon nos primeiros dias, assim como o abastecimento daqueles aliados em frutas, farinha e caça. Dessa taba deviam também ser alguns grupos guerreiros que tomariam parte nas batalhas contra os maracajás de Paranãpuã e contra os aliados portugueses na guerra da conquista da Guanabara.
Eirámirĩ, abelha miúda guerreira, a aldeia de Manguinhos
Seguindo a praia da enseada do Saco de São Cristóvão no extremo oposto ao lugar onde ficava Jabebiracica, chegava-se a uma ponta de terra onde se situava a foz de outro rio, e a seguir o litoral era ocupado por extensos manguezais. Existia a partir dali um grande espaço disponível ocupado por uma taba tupinambá de nome Eirámirĩ. Partindo da foz do rio Comprido e caminhando parte pela praia, parte por trilha na mata, chegava-se à foz do rio Inhaúma, o rio enlameado, uma referência ao terreno de mangue e pântanos que passava a predominar a partir desse ponto. Pela lógica, Eirámirĩ só poderia estar para além desse rio, na outra margem. Hoje esse rio outrora exuberante e cheio de vida jaz com o nome de Faria-Timbó porque, nesse ponto, o rio Faria já se juntou com o Timbó e deságua no canal do Cunha, um dos lugares mais poluídos da cidade. Exatamente onde hoje se encontra o bairro de Manguinhos e a Fundação Oswaldo Cruz. Eirámirĩ dominava a foz do atual rio Faria-Timbó. As margens próximas às tabas eram lugares vigiados pelos nativos, como se fossem a porta de casa, com kunumĩuasus a postos para avisar aos guerreiros sobre quaisquer movimentações estranhas. Haviam franceses no trabalho de intérprete nessa taba e suas funções erama garantir que os constantes carregamentos de pau-brasil, pimenta, tabaco, papagaios, macacos e outras curiosidades estivessem prontos para os navios mercantes das cidades francesas.
Eirámirĩ era a taba do “abelha pequena”. O significado do nome da taba devia tinha relação com um tipo de abelha miúda que existia em abundância. Ela produzia um mel de ótima qualidade, muito apreciado pelos tupinambás, tanto para alimentação quanto como cola nos rituais da tribo. Hoje essa abelha ainda existe e é mais conhecida como “abelha cachorro”. De cor negra azulada, faz as colmeias nos topos das árvores, sempre de forma arredondada, não tem ferrão e como defesa procura penetrar agressivamente nos orifícios do atacante, como boca, ouvidos e nariz. É uma das poucas tabas cariocas descobertas arqueologicamente. No final dos anos 1960, por conta da construção de uma rua dentro da Fundação Oswaldo Cruz, foi localizado “um sítio cerâmico contendo vários cacos visíveis no corte da estrada”, além de conchas de búzios.
Pirakãiopã, a tapera de Bonsucesso
Habitavam os rios que hoje são conhecidos como Faria, Timbó e Jacaré, que passam por boa parte dos bairros da Zona Norte, bem como pelos baixios e lagoas que compunham o antigo ecossistema dessa região que forneceu durante centenas de anos ótimas piracanjubas (espécie de peixe) para os nativos da Zona Norte do Rio de Janeiro Fazem parte das áreas onde hoje se encontram os bairros do complexo da Maré, Bonsucesso, parte de Ramos e de Inhaúma.
A palavra “tapera” é uma referência explícita à existência anterior de tabas nativas. A etimologia quer dizer em tupi antigo “aldeia que foi”; em bom português “aldeia em ruínas”, “aldeia extinta”. As grandes praças sem vegetação – as okaras –, que antes eram usadas de pátio de convívio das malocas tupinambás e eram dispostas circularmente, serviram, na medida em que iam sendo conquistadas, como abrigo e espaço para a construção das primeiras moradias, casas de engenho e igrejas.
Dessa taba saia uma velha trilha, um Peabiru, que os documentos indicam como sendo o “caminho que vai para a aldeia de Pindobuçu”, que mais tarde se tornou, ao que tudo indica, a estrada real de Santa Cruz na época do Império (depois avenida Suburbana, atual Dom Helder Câmara). A aldeia Piracanjuba é “revivida” no desfile do bloco de carnaval Cacique de Ramos.
Piráûasu, a taba do peixe grande
Ficava entre as tabas de Eiramiri e Sapopema, onde hoje estão os bairros de Cavalcanti, Tomás Coelho, nas cabeceiras do riacho Timbó. Pirausasu significa peixe grande e faz referência à uma espécie que foi extinta antes de qualquer catalogação e que deveria ser importante por provável dificuldade na pesca devido seu tamanho. Foi uma taba pouco relatada nas cartas de sesmarias talvez devido a semelhança e proximidade com a taba Pirakãiopã,
Eiraîá, o mel do Rio de Janeiro
Um dos bairros mais cariocas do Rio de Janeiro, berço de sambistas. O Irajá é uma das regiões da cidade que permaneceram com a designação original de uma das tabas ancestrais da terra. Eiraîá era uma grande aldeia tupinambá, das mais importantes
Percorre-se então esse trecho, que é paralelo às atuais Ilhas do Fundão e do Governador, passando alguns córregos. Em seguida, surge outro grande estuário: do rio que, não por outra razão, os portugueses conheceram e denominaram como Irajá. O nome original deste rio, que perpetuou a designação daquelas terras, nada mais era do que o nome da taba dos
Eiráîá era sinônimo de fartura, era a taba “repleta de mel” dos tupinambás. Certamente fazia alusão a essa característica da região, onde a natureza e a fauna eram exuberantes, com fartura de pesca e caça. Possuia grandes colmeias de abelha nativa (que chamamos de cachorro ou abelha-preta)
Diz-se desse mito que, quando os primeiros engenhos de açúcar começaram a ser introduzidos nessa parte da baía, os tupinambás escravizados ou aldeados que ali trabalhavam teriam se surpreendido com o melaço da cana, dizendo que aquele lugar já era repleto de mel – ou seja, Eiraîá – que nos ouvidos dos feitores lusos transformou-se em Irajá. O nome teria levado ao batismo de um engenho, daí a região e o bairro. As terras do Irajá, que no século XVI compreendiam uma área muito maior do que o atual bairro, foram uma das mais precoces na proliferação dos engenhos de cana-de-açúcar na Baía de Guanabara.
A localização de Eiraîá se encontrava ao longo do curso do atual rio Irajá, antes navegável e repleto de vida, e que abrange as terras dos atuais bairros de Cordovil, Brás de Pina, Vista Alegre, Vila da Penha e do próprio atual Irajá, antes de desaguar na Baía de Guanabara, à altura do fim da Ilha do Governador. Essa região foi ocupada e devastada por imensos canaviais nos primeiros cem anos da colonização portuguesa. O nome curto e diferente caiu no gosto dos europeus, popularizando-se nos anos seguintes para designar a vasta área a partir daquele rio. Com o aumento do número de engenhos de cana, surgiu ali também um importante porto de escoamento da produção de açúcar. Um movimentado entreposto onde se embarcavam as caixas de açúcar e que ficou conhecido como o Paço do Irajá.
Itanã, a misteriosa pedra tupinambá
Apenas uma ponta de terra o separa do curso de outro rio, formando no mapa um grande V em relação ao curso do Irajá. Esse era um dos maiores rios da Guanabara, o largo rio Meriti, que ao longo de seu curso se transforma no rio Pavuna.
Meriti é o nome de uma palmeira, em tupi antigo a meriti’yba, também chamada hoje em dia de Miriti, Buriti e Meriti, dependendo da região do Brasil. A árvore Meriti era essencial na cultura tupinambá, e não por acaso esse importante rio era chamado pelo mesmo nome. Além de fornecer a principal matéria-prima das malocas, o fruto do Meriti era também para eles uma fonte de alimento privilegiado. Rico em vitaminas, cálcio, ferro e também proteínas, podia ser comido ao natural e também ser utilizado para a fabricação do cauim. O óleo extraído da fruta tem valor medicinal, informação que era de conhecimento dos tupinambás, podendo ser utilizado como vermífugo e cicatrizante.
Hoje o rio Meriti não passa de um depósito de lama, com as águas negras da poluição gerada pelos diversos municípios que ele percorre desde o maciço do Mendanha até desaguar na Baía de Guanabara. Podemos verificar sua situação ecológica cruzando a autopista da Linha Vermelha em direção a Duque de Caxias, quando a estrada segue o curso do Meriti por quase 4 quilômetros e cruza a Ilha do Governador em direção à Baixada Fluminense.
A taba Itanã se localizava logo depois da aldeia Eiraîá, que, como vimos, estava no rio Irajá, adjacente ao Meriti. Um pequeno, mas impressionante rochedo, parecido com a mó de um moinho é que marcava o caminho em direção a essa taba. Acredita-se que se um dia existiu essa rocha deveria estar nas terras onde é hoje a divisa com Duque de Caxias, num local entre o rio Irajá e o atual rio Sarapuí era comumente mencionado como a “Costa de Itiúna ou Itaúna”.
REFERÊNCIAS
Silva, Rafael Freitas da. Rio Antes do Rio. . Editora Relicário. 4ª edição. Rio de janeiro, 2019
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