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ASCENSÃO DO SAMBA E DAS ESCOLAS DE SAMBA

Apesar de toda perseguição e estigmatização do samba, de seus criadores e ritmos, em 1920 surge um novo olhar para essa cultura discriminalizada. Em busca de um arte genuinamente brasileira, os intelectuais modernistas passam a se interessar por essa cultura dita de mulato, sem nenhuma semelhaça com as culturas vistas e estudadas até então. A classe intelectual e elitizada passa a frequentar esses redutos, observar suas características, um misto de sagrado e profano que ao mesmo tempo enrusbece e excita. Nesse período, os intelectuais se tornaram os principais mediadores culturais – tentavam incentivar a elite e até mesmo o governo, de que o samba era o que de melhor havia para a construção de uma identidade nacional. Buscava-se essa identidade a partir de uma tradição carioca, o que gerou controvérsias, já que a mesma era oriunda de afrodescendentes. Iniciou-se um diálogo cultural entre populares e a classe dominante que nada mais era que uma disputa velada entre civilidade e tradição.

Os morros e a Praça Onze passam a ser considerados como celeiros da cultura negra. Romantização das favelas e morros onde se vivia na pobreza mais feliz. Surge interesse pelo samba por artistas de outras classes sociais e organização de grupos musicais para tocar fora dos morros. Batuques originais ao contrário do samba influenciado pelo maxixe. O morro e sua favela se torna ícone do Brasil malandro e brejeiro. Muitos grupos de samba de morro também eram integrantes de grupos carnavalescos e desfilavam no Carnaval. Os jornais cariocas passam a organizar concursos para esolha de melhores sambas. Com o início do rádio ocorre divulgação em massa das músicas produzidas pelo país.

Para muitos autores, como Sodré e Gramsci, isso foi um misto de dominação e resistência, acomodação e negociação, incorporação e aceitação de valores. De um lado, havia o negro, mestiço, mulato, buscando viver da música e com isso adquirir ascensão social. De outro, uma classe dominante querendo agradar os olhares estrangeiros, com algo tipicamente nacional e sem equivalentes em outros lugares do mundo. De acordo com Vianna (2004), o samba não se transformou numa música nacional através do esforço de um grupo social ou étnico específico dentro de um cenário específico (“o morro”). Os vários grupos, elite intelectual e política e sambistas populares, usavam uns aos outros para atingir objetivos diversos como construção de uma nacionalidade por uns, sobrevivência no mundo da música para outros ou apenas fazer arte moderna. Para isso, era necessário mudar a estética do samba, torná-lo mais aceitável, mais próximo dos gostos da elite. Coube aos populares abrirem mão da essência e aceitar as regras de mercado. O samba continuou sendo gosto musical específico de alguns porém apresentado como um gosto geral e associado ao Estado. Uma criação de formas diferentes de apropriação e uso do ritmo, segundo Sodré (SODRÈ 1998, pp35-36) Houveram diversas concessões à subordinados como forma de equilíbrar as forças políticas (GRAMSCI 2007, p.48).

O samba sofreu diversas modificações consideradas na verdade uma expropriação e uso do ritmo com interesses muito além dos culturais. Suas letras passaram a ser mais românticas num linguajar dito mais “civilizado”. A estética dos movimentos corporais da dança se modificaram afastando-se de sua relação com o sensual e com a religiosidade. O samba passou a ser adaptado, com uma pré-seleção e modificação do conteúdo. Virou um artigo comercial lucrativo através da profissionalização do negro e a mercantilização da sua música, surgimento de direitos autorais, regra de mercado das gravadoras e divulgação através das rádios e programas de auditório. A midiatização causou distorções em sua reprodução ideológica e social. Deixou de se orientar por seu próprios motivos e se submeteu à uma lógica industrial, comercial e lucrativa. Se transformou em uma produção artística onde o sambista pautava sua busca de ascensão social e financeira, prestígio e alternativa de sobrevivência. Segundo Hobsbawn a produção artística para essas pessoas pobres, não era apenas uma forma de entretenimento, mas representava, também “ a única possibilidade de sair da sujeira e da opressão e alcançar uma relativa liberdade” (HOBSBAWN 2004, p 218) Mudou também a relação entre sambistas com a dissolução da camaradagem, das alegres rodas de sambas e disputas bairristas – o samba se tornou uma produção individualizada tanto na composição como na interpretação.. Segundo Juliana Lessa Vieira, o êxito desconectou o samba de sua origem social. Ganhou visibilidade, admiração de intelectuais e reconhecimento pela sociedade às custas da perda de sua essência maior. Além disso, a mudança de concepção não elevou socialmente os sambistas. Muitos eram desinformados e analfabetos, não tinham acesso aos direitos autorais e continuavam desfavorecidos do ponto de vista político. Mesmo depois de sua comercialização, o samba continuou sendo, nos redutos negros e mestiços, o espelho da alma brasileira mantendo viva suas experiências de convívio, visão de mundo, memória, lugar de fala. (VIEIRA 2012).

O samba acabou ganhando espaço no cenário carioca, com a aceitação pelo poder público e pela sociedade. Tornou-se o gênero musical predileto do Carnaval. Seu reconhecimento como identidade nacional aconteceu com a criação das Escolas de samba. Seu auge também se relaciona com o fato da cidade do Rio ter perdido sua condição de capital e consequentemente, ter sofrido uma estagnação econômica. Isso fez com que o governo investisse mais na vocação cultural e festiva do Rio de Janeiro como uma estratégia de sobrevivência.

Aos poucos, os desfiles foram conquistando o Carnaval oficial, sofrendo transformações com alegorias mais elaboradas e requintadas, com pomposos carros alegóricos e com enredos que atraiam a classe média. Os ranchos foram se estabelecendo como agremiações culturais de grupos de um mesmo lugar e adquiriram caráter competitivo – surgem as Escolas de Samba, assim denominadas por conta do encontro de grandes sambistas, consagrados nas festas populares como mestres do samba. Adquirem regras e regulamentos próprios minimizando embates ideológicos e incorporando elementos externos aceitando o padrão estético das grandes sociedades carnavalescas como forma de sair da marginalidade. Com isso, se espalharam por várias áreas da cidade e surge um novo modelo de Carnaval.


Desfile de Carnaval na Praça Onze - Acervo BNDigital


A primeira Escola, Deixa Falar, surge no bairro do Estácio, considerado berço do samba enredo. As primeiras escolas se apresentavam primeiramente na Praça Onze Possuiam estrutura informal e limitação financeira. A criatividade se dava com a ajuda da própria comunidade, com o improviso e trabalho voluntário de moradores e componentes. Era um Carnaval feito para si e para o bairro, onde se misturavam sentimentos de pertencimento e memória. Possuiam relação próxima com os bicheiros da cidade, os maiores contribuintes financeiros das agremiações e importantes contraventores na época. Com o início das disputas, houveram muitas brigas e confusões gerando perseguição e ocorrências policiais. Acaba sendo transferido para a Av. Presidente Vargas onde foram montadas arquibancadas para o público..


Desfile na Av Presidente Vargas


Com o reconhecimento pelos intelectuais e poder público, as Escolas de Samba passaram a ser consideradas como um microempreendimento lucrativo para atrair, com seus desfiles, turistas e renda. A gestão das agremiações gerou inclusão de profissionais dos mais diversos setores artísticos exigindo desfiles mais elaborados, sambas enredos visando a compreensão do enredo, dedicação aos aspectos visuais dos desfiles, novo padrão de qualidade estática, detalhes visuais e inovações tecnológicas. Surge uma parceria com folcloristas, cenógrafos, pintores, figurinistas, criando vínculos com a classe média brasileira. Incorporação de elementos externos à tradição com a atuação de artistas plásticos, destaque para Fernando Pamplona o precursor e professor de diversos carnavalescos da atualidade. Fantasias e alegorias assumem lugar de destaque

O espetáculo, antes popular, passou a ser um produto altamente comercializável. As Escolas de Samba passaram a sobreviver às custas da mercantilização, do apoio financeiro da classe política com desfiles impessoais, voltados para turistas, não representando mais a vida cotidiana de seus criadores e sim, interesses econômicos de uma sociedade capitalista. Segundo Raphael, ao invés de representar uma forma de cultura popular espontânea, natural e autêntica , a escola de samba tinha se tornado um microempreendimento em busca de lucro, gerando serviços por contratos com agências de turismo da cidade (RAPHAEL1990, p83). Novos espaços para desfile foram construídos e afastaram cada vez mais o público com altos preços de ingressos. Se tornou um símbolo da cultura urbana carioca e o maior espetáculo carnavalesco do mundo às custas do afastamento de sua origem e de seus significados com perda da pureza original, das tradições e autenticidade da cultura popular.


REFERÊNCIAS SODRÉ, Muniz. Samba: o dono do corpo. 2. ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

VIANNA, Hermano. O Mistério do Samba. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar/ Ed. UFRJ. 2004

GRAMSCI, Antônio. Cadernos do cárcere vol 2. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007

RAPHAEL, Alison. From popular culture to microenterprise: the history of Brazilian samba schools.Latin American Music Review, v. 11, n. 1, p.83, 1990.

VIEIRA, Juliana L. O Samba e a cultura da classe trabalhadora carioca (1900-1930) – Dissertação de Mestrado em História. PPGH/ UFF NITERÓI 2012

HOBSBAWN, Eric J. História social do jazz. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004__________”O fazer da classe operária, 1870-1914”. In Mundos do Trabalho: novos estudos sobre história operária. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005


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