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CEMITÉRIO DOS PRETOS NOVOS - DA BÁRBARIE A RESISTÊNCIA

Foto do escritor: danielericcodanielericco


O sítio arqueológico Cemitério dos Pretos Novos, que funcionou durante os anos de 1769 a 1830, é a principal prova material e incontestável, encontrada até hoje, sobre a barbárie ocorrida no período mais intenso do tráfico de cativos africanos para o Brasil. Os africanos recém-chegados ao país eram chamados pretos novos. Logo que eram vendidos ou aprendiam o português passavam a ser chamados de “ladinos.


O Cemitério dos Pretos Novos funcionou de 1772 a 1830, no Valongo, faixa do litoral carioca que ia da Prainha à Gamboa. Funcionara antes no Largo de Santa Rita, em plena cidade, próximo de onde também se localizava o mercado de escravos recém-chegados. No Largo de Santa Rita eram enterrados membros da irmandade negra da Igreja de Santa Rita. Era uma irmandade onde o negro predominava. Era um local de reunião onde além de frequentarem as missas, os africanos e seus descendentes reconstruíram ali laços de amizade. Por ser mais afastada do centro, Santa Rita teria sido uma das primeiras igrejas onde essa convivência era possível, reunindo africanos libertos, lideranças religiosas e escravizados. Já os africanos mortos nos tumbeiros ou ao chegarem, eram enterrados em frente à Igreja de Santa Rita, atual Largo de Santa Rita, entre 1722 e 1769. Diante dos enormes inconvenientes da localização inicial, ordenou que mercado e cemitério fossem transferidos para o Valongo, área então localizada fora dos limites da cidade.

Os Pretos Novos, após uma longa viagem, desembarcavam dos navios negreiros exatamente onde, hoje, se localiza a Praça XV (Rio de Janeiro) para, então, serem comercializados onde atualmente se situa a Rua da Alfândega. Os cativos que se encontravam enfermos eram levados diretamente ao Lazareto, um local de quarentena e tratamento de moléstias potencialmente contagiosas. Devido à possibilidade de uma epidemia, eles eram mantidos afastados de quaisquer outras pessoas, até que se tivesse a certeza de cura. Aqueles que não conseguiam sobreviver às enfermidades eram, então, levados ao Cemitério dos Pretos Novos. Estima-se que ali tenham sido “enterrados”, durante os seus sessenta e um anos de funcionamento (1769 – 1830), ao menos vinte e cinco mil escravos africanos. Os registros dos óbitos foram arrolados no Livro de Óbitos da freguesia de Santa Rita, responsável pelo referido campo santo. Neste Livro de Óbitos, era encontrado os seus respectivos navios, suas nações ou portos de origem, os donos e a idade dos “escravos novos”, bem como as marcas que os mesmo recebiam por ocasião do embarque em seus Tumbeiros. O estudo desse Livro mostra que a maioria desses escravos eram homens, provenientes da África Central e de origem banto.



Foram depositados neste cemitério os restos mortais de dezenas de milhares de africanos, brutalmente retirados de sua terra natal e trazidos à força para o trabalho escravo. E igualmente bruta também era a forma como seus corpos foram despedaçados, queimados e espalhados pelo terreno, cobertos apenas com algumas pás de terra. Os corpos teriam sido descartados em covas rasas, muitos, cobertos de doenças, como as bexigas de varíola, provocadas pelas péssimas condições do translado. Com o intuito de liberar mais espaço, seus corpos eram amontoados e incendiados, enquanto outros corpos “aguardavam” na mórbida fila de espera para o vilipêndio. A forma precária com que se faziam os sepultamentos deixavam os seus corpos insepultos. Ficavam por vezes expostos ao relento e o odor dos seus corpos putrefatos revoltou os moradores do entorno, no início do século XIX. A situação de descarte humano era tão degradante que moradores ainda lançavam seu lixo doméstico: restos de comida e fragmentos de louças, cerâmicas e vidros.


Os relatos de viajantes que estiveram pelo Rio de Janeiro, no século XIX, contam que o Cemitério dos Pretos Novos não passava de uma montanha de terra e de corpos despidos, em decomposição, que de tempos em tempos eram queimados e seus ossos quebrados e revirados à terra. Em 1853, o Caminho do Cemitério passa a se chamar ironicamente de Rua da Harmonia.

Desprovidos de importância aos olhos dos traficantes, sem visibilidade social e nenhum tipo de vinculo com a terra em que chegavam, os pretos novos eram lançados à terra, desprovidos de qualquer ritual religioso, bem como aparatos como mortalhas, roupas e orações fúnebres. Inseridos através da violência em uma sociedade escravista e extremamente hierarquizada, que os não desejava a não ser por motivos amplamente mercantis, os pretos novos ocupavam o mais baixo patamar social, sendo-lhes vedada qualquer forma de tratamento respeitoso e de consideração, mesmo na hora derradeira da morte.

O cuidado na hora da morte sempre foi um tema delicado em todas as sociedades e culturas conhecidas. Por mais diferentes que possam ser, todas possuem em comum, uma relação muito próxima com o sagrado, sobretudo quando isso está em conexão com o além-túmulo. Na cosmologia banto, o mundo era dividido em duas partes que se completavam: a do mundo “perceptível”, que seria este que vivemos, e a do mundo das “causas invisíveis”. Qualquer acontecimento fosse bom ou ruim, era fruto de obras realizadas no mundo invisível mágico. Por outro lado, os bantos praticavam o culto aos ancestrais, no qual a figura dos antepassados era de suma importância para cada linhagem, para o sucesso nas colheitas, na pesca, e para a manutenção da própria vida. Nesse sentido, morrer longe dos seus, ou não sepultar o seu ente querido significava um corte drástico na manutenção da vida em comunidade. Morrer desta maneira significava ficar sem linhagem, portanto, sem a perspectiva de uma vida futura junto aos seus antepassados, em África. Além disto, o mar era visto como o um local da travessia para o mundo do além, ou, como na língua banto, a “Kallunga”, que fazia divisa com o lugar onde os mortos habitavam, que neste caso estava repleto de brancos. Não só a cor branca significava a morte, mas também os homens brancos eram vistos como os próprios mortos, uma vez que habitavam o outro lado do espelho d’água, a Kallunga. Muitas vezes os escravos se jogavam ao mar de dentro das embarcações e muitos corriam até as praias a fim de mergulharem na Kallunga, a fim de se reencontrarem com seus antepassados em África.

Embora a existência do Cemitério dos Pretos Novos fosse conhecida de historiadores e da literatura sobre a cidade do Rio de Janeiro e sobre a escravidão no Brasil, sua localização tornou-se totalmente desconhecida por décadas até o ano de 1996, quando, por ocasião de uma obra realizada na fundação de uma casa, foram encontradas ossadas humanas a poucos centímetros de escavação. A descoberta fortuita foi feita pela família Guimarães dos Anjos, em 8 de janeiro de 1996, durante reforma na casa. nos números 32, 34 e 36 da rua Pedro Ernesto, no bairro da Gamboa, Rio de Janeiro. Durante a obra, descobriram restos mortais que pensavam ser, inicialmente, ossos de animais. Todavia, descobriu-se posteriormente que se tratavam de ossadas humanas. Diante de uma enorme quantidade de ossos que “brotavam” do chão, o casal procurou por ajuda e acabaram por descobrir que as ossadas pertenciam a escravos africanos recém- chegados ao Brasil durante o século XVIII e XIX. Hoje funciona o Memorial e o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos.








Após quatro anos de descaso do poder público, a Família Guimarães dos Anjos decidiu realizar por conta própria exposições itinerantes com o rico material encontrado nas escavações. Mas reconhecendo a importância do local para a história da cidade do Rio de Janeiro e para a divulgação da história dos Pretos Novos, perceberam que ali deveria se tornar um espaço de visitação pública. No dia 20 de novembro de 2001 foi realizado o primeiro evento aberto ao público na residência. O achado completou 25 anos em janeiro deste ano e o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos existe no local desde 13 de maio de 2005. Em 2010, o IPN iniciou as atividades de oficinas de História. Com uma sobra mínima de recurso financeiro e o apoio de alguns artistas voluntários, foi idealizada a primeira versão da exposição permanente do Memorial Pretos Novos. Pela primeira vez, os visitantes puderam ver o trabalho realizado pelos arqueólogos nos poços de sondagem, que contextualiza a brutalidade das atividades funerárias impingidas aos corpos dos africanos recém-chegados ao Rio de Janeiro.

Outras descobertas recentes, reforçando a teses da localização dos cemitérios para pretos novos, aconteceu com a instalação do último trecho do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT), ligando a Central do Brasil à Avenida Marechal Floriano. Todas as escavações foram feitas no Porto Maravilha, região formada por uma série de sítios históricos e locais de referências que compõem o Circuito Histórico e Arqueológico da Celebração da Herança Africana. Além do Cais do Valongo, registrado como Patrimônio da Humanidade em 2017, a região abriga o Instituto dos Pretos Novos, que preserva descobertas do cemitério de pretos novos do Valongo. As escavações arqueológicas pretendiam identificar e delimitar o cemitério de pretos novos, conservando o máximo possível de peças no local. As primeiras sondagens arqueológicas resgataram faiança (louça de barro coberta por esmalte) fina, portuguesa, porcelana, fragmentos de cachimbo de cerâmica e de caulim, além de uma série de fragmentos de ossos humanos como crânio, dentes e tíbia. Mas a pedido do Movimento Negro, arqueólogos não avançaram sobre área no entorno do traçado do VLT, considerada sagrada. A história do antigo cemitério dos pretos novos do Largo de Santa Rita vai permanecer enterrada. Após uma série de polêmicas, o Iphan e a concessionária do VLT cederam a apelos do movimento negro e modificaram o projeto de pesquisa na região: o sítio arqueológico não foi mais escavado, para evitar que ossadas fossem remexidas e removidas. O trabalho foi limitado à pesquisa e à delimitação do cemitério. arqueológico. As análises laboratoriais de possíveis ossadas não foram mais realizadas.




O cemitério dos Pretos Novos é mais que uma testemunha a céu aberto: é o indício do famigerado tráfico negreiro e os ossos, que jazem ali, são muito mais do que relíquias abertas à visitação - são provas reais do que um ser humano é capaz de fazer a outro.


REFERÊNCIAS

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/escavacoes-podem-revelar-cemiterio-de-escravos-africanos-no-rio/

https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2018-07/escavacoes-podem-revelar-cemiterio-de-escravos-africanos-no-rio/

https://exame.com/brasil/escavacoes-podem-revelar-cemiterio-de-escravos-africanos-no-rio/

https://pretosnovos.com.br/museu-memorial/cemiterio-dos-pretos-novos/

Santos, Andrei de Souza. O Cemitério dos Pretos Novos e suas representações simbólicas no tocante à preservação da memória afro-brasileira. Trabalho de Conclusão de Curso de graduação apresentado ao Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, da Universidade Federal Fluminense. Rio de Janeiro 2017

Pereira, Júlio César Medeiros da Silva. As duas evidências: as implicações acerca da redescoberta do cemitério dos Pretos Novos. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. n.8, 2014, p.331-343

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