O dia 2 de dezembro é Dia Nacional do Samba. Mas você sabe como a data foi criada?
Tudo começou em 1962, no I Congresso Nacional do Samba (28/11 a 2/12), quando Edison Carneiro, presidente da solenidade, redigiu a Carta do Samba, com orientações para a manutenção da tradição e definindo o dia 2/12 como
Dia do Samba. A data só entrou no calendário oficial da cidade em jul/1964, instituído pela Lei nº 554, e é de autoria do deputado Frota Aguiar, mas os sambistas cariocas iniciaram as comemorações já em dez/1963. Nesse ano, o boletim de encerramento do II Congresso Nacional do Samba (nov/1963) dizia que "nas escolas de samba da Guanabara e nos redutos principais do samba (...) o samba será festejado com o repicar de tamborins, com o ‘roncar’ das cuícas e com uma alvorada de 21 batidas no ‘surdo’."
Com o tempo, os sambistas e amantes do ritmo no Rio de Janeiro criaram uma tradição para comemorar ao melhor estilo carioca: o Trem do Samba. Desde 1997, para marcar as comemorações, partem da estação terminal Dom Pedro II (Central do Brasil) cinco trens em direção à estação de Oswaldo Cruz, quatro deles, compostos por oito carros cada, destinadas aos participantes da festa e um disponibilizada para as Velhas Guardas das Escolas de Samba, unidas nesta grande comemoração. Em Oswaldo Cruz acontecem rodas de samba e shows nos palcos espalhados pelo bairro rompendo a noite e só terminando na manhã seguinte. .Desde então, milhares de pessoas já se reuniram para curtir o calor humano dos vagões lotados, cantando e tocando os clássicos do samba. Tradicionalmente, a partir das 18h do dia 2/12 esse trajeto é feito, relembrando o trajeto que Paulo da Portela realizava diariamente nos anos 1920 na volta do trabalho.
O Rio de Janeiro, no século XIX, era uma das maiores cidades negras , com 2/3 de sua população constituída de negros. Esse boom demográfico aconteceu devido as pressões contra o escravismo e declínio da produção fluminense de café gerando um aumento da migração para o Rio de Janeiro, cidade em ascensão devido ao aumento de investimentos na indústria e serviços. Com a abolição da escravatura, parte dessa mão-de-obra de ex-escravos sem qualificação, foi absorvida pelo cais do Porto, onde necessitavam de pessoas com disposição para o trabalho duro e que se sujeitasssem a baixos salários. Também se dedicaram ao ofício de serviços domésticos, sapateiros, alfaiates, açougueiros, pedreiros, marceneiros, trabalhos em pequenas ofici/nas de caráter artesanal e lojas, até mesmo pelas ruas, principalmente mulheres, com o comércio de alimentos em barracas.
Essa população, agora livre, se viu responsável pelo seu próprio sustento, incluindo sua própria moradia. Proliferaram cortiços, estalagens e casas de cômodos junto à área do cais do Porto ( Pequena África – Saúde, Gamboa e Santo Cristo) devido a proximidade com os locais de trabalho. Esses lugares se transformaram em redutos negros onde, nos breves momentos de repouso, ocorriam suas celebrações, festividades, danças e cantorias, com fortes características africanas e associadas à religiosidade. Foram os primeiros locais de criação do samba, onde expressavam seus ideais de resistência e reconstrução identitária.
No início do século XX, o Brasil experimentava um potencial de crescimento econômico. Houve um aumento do comércio externo. Buscava-se impulsionar a economia do país baseada na agroexportação do café e atrair capital estrangeiro. Isso gerou a necessidade de uma reforma na cidade do Rio de Janeiro. Pereira Passos , prefeito do Rio na época, ficou incumbido de realizar uma reforma urbana visando saneamento, urbanismo e embelezamento das cidades.
O maior empecilho a seus ideais modernistas eram os cortiços. Os cortiços eram as moradias coletivas mais acessíveis a classe trabalhadora. de origem negra e considerada antro de vadios e malandros. Com o aumento populacional, houve um grande aumento dessas acomodações insalubres e sem saneamento básico o que favorecia o desenvolvimento de doenças contagiosas como varíola, tuberculose e febre amarela. A solução encontrada foi a derrubada dessas habitações de forma a controlar a propagação de doenças e promover reformas sanitárias.
A derrubada dos cortiços gerou à expulsão de uma população, de maioria negra e de suas práticas culturais Retirados de suas áreas de convívência, essa população reconstruiu suas vidas em morros próximos e subúrbios distantes ao longo da linha férrea. Grande parte seguiu a malha ferroviária buscando moradia principalmente nas áreas de Madureira e Osvaldo Cruz. Era uma área de engenhos em decadência que logo foi ocupada por moradias de baixa renda ( começo dos loteamentos). Se criou um novo espaço urbano com atividades próprias, com pessoas solidárias na falta de assistência social, transporte e infra-estrutura, formando seus próprios comércios e criando seus próprios empregos. . Surgiram laços culturais e sentimentais com o subúrbio e os morros, territórios negros, onde se desenvolveu culturalmente o samba.
Oswaldo Cruz é o bairro onde o Grêmio Recreativo Escola de Samba Portela foi fundado na década de 1920. Seus limites geográficos são: Madureira (leste), Bento Ribeiro (oeste), Vila Valqueire (sul) e Turiaçu (norte).
A fundação do ramal ferroviário que ligou o centro da cidade com Oswaldo Cruz facilitou o deslocamento de parcelas da população como funcionários públicos, militares, pequenos comerciantes e profissionais liberais que passaram a residir em Oswaldo Cruz e trabalhar no centro da cidade. O ramal de trem que liga as estações Dom Pedro II e Deodoro é composto por dezenove estações. Oswaldo Cruz é a décima sexta estação, distante 18 km do Centro da Cidade. Foi fundada em 17 de abril de 1898. A primeira linha de circulação ferroviária construída pela Estrada de Ferro Dom Pedro II (atual Central do Brasil). A inauguração da estação ferroviária, portanto, não trouxe somente progresso para a região com a implantação de novos comércios e habitações mais bem construídas, mas também alterou econômica e culturalmente a população local, que passou a ser composta por migrantes de outras regiões da cidade. Assim, Oswaldo Cruz se transformou, como outros bairros do Rio de Janeiro, num espaço híbrido formado por grupos cultural, geográfica, política e economicamente diferenciados.
A família Oliveira foi uma das que se deslocaram do centro da cidade para Oswaldo Cruz, oriundas do bairro da Saúde. Um dos filhos dessa família que chegou a Oswaldo Cruz em 1920 chamava-se Paulo Benjamim de Oliveira, mais tarde conhecido como Paulo da Portela, tinha, então, 19 anos, e foi um dos fundadores da Escola de Samba Portela. Com a inauguração da Estrada de Ferro, o bairro foi dividido em dois lados. Do lado direito de quem vai do centro para a zona oeste a parte vivem moradores de maior poder econômico, concentra-se o comércio local e se encontra a sede da Portela. Do lado esquerdo há escassez de comércio (apenas padaria, fábrica de sorvete, loja de móveis e duas barracas de ambulantes). O que caracteriza esse lado é a presença de um conjunto habitacional do antigo Banco Nacional da Habitação (BNH). A Portela e o Conjunto do BNH são os elementos definidores dos lados de Oswaldo Cruz conhecidos como “lado dos conjuntos” e “lado da Portela”.
O pessoal da Portela se reunia diariamente. Mas era no trem. A reunião era na Central. Aqueles que trabalhavam, saiam de manhã com tamborim, pandeiro debaixo do braço e voltavam no trem das 18:04h, da Central para Oswaldo Cruz. Esse trem era paradouro, parando em todas as estações, do Engenho de Dentro a Cascadura. A maioria ficava em Oswaldo Cruz. Outros iam para Bento Ribeiro, Madureira e adjacências. Já começavam a passar o samba na Central, enquanto esperavam a hora do trem. Na estação, o carro de prefixo Deodoro era a sede móvel da Portela. Nesse tempo não tinha roleta, não tinha coisa nenhuma. O sujeito entrava no trem, o condutor ia cobrando, picotando as passagens. Muita gente não pagava e o hábito de viajar no 18:04h durou muito tempo. Quando chegava domingo, grande parte já conhecia o samba de cor. Paulo da Portela vinha sempre nesse carro, andava de um lado para outro no trem, advertindo, às vezes, quem se comportava mal. O prazer não estava só em voltar ao lar, mas também na oportunidade de poder soltar a voz e cantar um belo samba sem se preocupar com a repressão, afinal, ali, no trem, não havia ninguém para reprimi-los.
O Samba no Trem funcionava como um meio de resistência e espaço preservacionista frente aos projetos de aniquilamento do samba. Apesar de ter havido proibições em relação ao samba e aos espaços físicos do samba, o tema da proibição está mais associado à identidade coletiva construída do “malandro”. A associação do sambista com o malandro era feita nas décadas de 1920 e 1930, “pelo senso comum”, pela imprensa do Rio de Janeiro e pelas próprias letras das canções. Foi na Portela, com Paulo da Portela, que teve início um movimento de “desmalandrização”. Para o fundador da Portela, o “sambista, tem que usar gravata e sapato. Todo mundo de pés e pescoços ocupados”, numa postura contra os chinelos e camisetas do malandro da época. Para quem participava era mais associado a uma forma de distração, no sentido do lazer, para ocupar o tempo de permanência no trem com uma expressão cultural que caracteriza esse grupo: a música.
Em 1990, um grupo de moradores de Oswaldo Cruz, incluindo os sambistas da região, decidiu fundar um movimento social com o objetivo de resgatar a autoestima dos moradores e atrair políticas públicas para o bairro. Surgiu, assim, o Movimento Cultural Acorda Oswaldo Cruz (Acorda), que tinha como principal motivação a recuperação da memória coletiva dos moradores.
A motivação política aliada à história cultural do bairro, ligada a presença de ilustres músicos da Escola de Samba Portela, fez com que o Acorda decidisse revitalizar a relação do bairro com sua história cultural mapeando as residências e lugares onde os sambistas moravam e/ou que frequentavam; a divulgando, através da mídia, essa história; intervindo junto à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro para prestar uma homenagem a integrantes do GRES Portela e divulgando a história cultural do bairro através de panfletos distribuídos em pontos estratégicos: Estações de trem, igrejas, clubes e escolas.
Foi, a partir da das memórias sobre o Samba no Trem que o Acorda decidiu realizar uma ação cultural que reproduzisse, pelo menos na forma, a ação dos portelenses da década de 1920: o Pagode no Trem.
O Pagode no Trem possuía uma estrutura bastante similar ao seu antecessor da década de 1920. Um grupo de pessoas saía de Oswaldo Cruz, à tarde, levando alguns instrumentos musicais (pandeiro, tam-tam, reco-reco) e um equipamento de som alimentado por uma bateria de automóvel, em direção à estação Dom Pedro II. Enquanto isso, outras pessoas, as que voltavam do trabalho, concentravam-se na estação Dom Pedro II. Na estação de trem o samba era feito por pessoas que não possuíam consórcio, isto é: cada um que chegava, independentemente de pertencer ou não a algum grupo, ou mesmo de ser ou não músico podia, tocar ou “puxar” algum samba. No trem de 17h50 saíam da Central, em direção a Oswaldo Cruz, no terceiro vagão, tradicionalmente o vagão do pessoal de Oswaldo Cruz.
Nesse vagão vinham, além dos “oswaldocruzenses”, pessoas comuns, pois o trem parava em todas as estações do ramal de Deodoro, entrando e saindo passageiros ao longo do percurso. Chegando a Oswaldo Cruz as pessoas dirigiam-se a um dos botequins, previamente avisado, que preparava o ambiente com algumas mesas e cadeiras e bastante cerveja.
Após três anos de existência o Acorda foi desfeito em consequência de um conflito interno entre os segmentos capitaneados por duas pessoas: Edson de Oliveira e Marcos Sampaio. Marcos Sampaio, conhecido, atualmente, como Marquinhos de Oswaldo Cruz, foi um dos fundadores do Acorda Oswaldo Cruz, tendo participado ativamente do Pagode no Trem como organizador e como músico. No Acorda, fazia parte do segmento que defendia a profissionalização dos músicos que integravam o Movimento. Em 1995, amparado na ideia de reedição do Pagode no Trem, lançou o Trem do Samba. Todo dia dois de dezembro, o Rio de Janeiro comemora o Dia do Samba. Desde 1995, o Trem do Samba passou a ser uma das principais atividades dessa comemoração.
Em 1999, o então prefeito Luiz Paulo Conde incluiu o Trem do Samba no calendário oficial da prefeitura. O município patrocinou a festa até 2017, quando a gestão de Marcelo Crivella retirou o apoio. Em 2019 o evento - que reúne cerca de 100 mil pessoas - foi cancelado por falta de verba. Em 2020, Marquinhos de Oswaldo Cruz organizou a festa virtualmente, por conta da pandemia de Covid-19.
Esse ano, o público poderá finalmente curtir o Trem do Samba de novo, mas com algumas mudanças: a Supervia liberou, para o dia 4/12 (sábado), apenas 1 trem, que será destinado a convidados. Mas a festa continua em Oswaldo Cruz com 3 palcos ( na rua João Vicente em frente ao BNH, na rua Átila da Silveira próximo a Associação Atlética de Oswaldo Cruz e na Praça Paulo da Portela onde fica a Portelinha, antiga sede da Portela) e 15 rodas de samba e shows de de Dudu Nobre, Leci Brandão, Moacyr Luz e Juninho Timbáu, entre outros.
REFERÊNCIAS
Rodrigues Junior, Nilton O Samba pede carona: samba, ritmo e música nos trens urbanos Ponto Urbe [Online], 4 | 2009, posto online no dia 31 julho 2009, consultado em 04/12/2021. URL : http:// journals.openedition.org/pontourbe/1469 ; DOI : 10.4000/pontourbe.1469
SEVSCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República, 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
Comments