Quanto às favelas, existem algumas hipóteses sobre sua origem. Uma delas está relacionada aos quilombos, que iriam perdendo a função de espaço de luta e resistência negra, expandindo e transmutando-se nas favelas, sobretudo nas freguesias urbanas. Os quilombos eram espaços de resistência à ordem Imperial e que muito se assemelharia às atuais favelas cariocas. Embora sua origem e organização estivessem no campo, também havia modalidades urbanas, principalmente na capital da província. Nesta época, havia grande representatividade de escravos e alforriados que se refugiavam em áreas desabitadas, dentre elas, os sítios próximos à área central em freguesias rurais localizados nas encostas de morro com cobertura florestal, que serviam de construção de mocambos.
Uma segunda hipótese é a de que muitos negros provinham da Guerra do Paraguai (1865-1870) e já se reuniam nas favelas mesmo antes da Abolição. Durante a Guerra, muitos escravos foram sendo alforriados pelo Governo para servirem de exército nos combates. No retorno, acabavam acampando nas proximidades do Ministério da Guerra à espera de uma solução sobre suas moradias, mas, em razão da omissão governamental, se deslocaram para os morros próximos à área militar.
A terceira tese aponta a origem das favelas no cenário urbano carioca em consequência do retorno de ex-combatentes da Guerra dos Canudos (1896- 1897) que obtiveram permissão para habitar provisoriamente nos Morros da Providência e de Santo Antônio, e por lá se instalaram, aproveitando-se de uma certa permissividade do Governo, já que a reforma urbana da cidade previa a destruição da maior parte dos cortiços e quartos na mesma região onde se localizavam essas favelas.
Morro da Providência
A tese mais conhecida é a de que a formação da favela foi uma opção de moradia frente à discriminação que os moradores dos cortiços sofriam, tanto pela sociedade burguesa como pelo Governo.
O sistema escravista vinha se esgotando e iniciava-se um processo capitalista industrial – de base agroexportadora – acompanhada da emergência de um operariado industrial. Isso tornou aguda a problemática da pobreza e das condições subumanas das moradias dos trabalhadores, dizimados pelas pestes e doenças. Os espaços de habitação das camadas pobres não mais condiziam com a nova imagem que se desejava passar da cidade.
Ocorre proliferação das habitações coletivas pela cidade, com concentrações significativas nas chamadas freguesias centrais. Mesmo a entrada em funcionamento das companhias de carris puxados a burro, a partir de 1868, e o início do tráfego suburbano da Estrada de Ferro D. Pedro II, em 1861, pouca influência terão sobre esse quadro, pois só aqueles que possuíam rendas ou que, pelo menos, tinham remuneração estável poderiam dar-se ao luxo de morar fora da cidade, seja nos elegantes arrabaldes de Botafogo e Engenho Velho, seja nos mais modestos subúrbios que se formavam ao longo da via férrea. Para a maioria da população, entretanto, a localização central, ou próxima ao centro, era condição indispensável para a própria sobrevivência.
Morar na área central significava muito mais do que não ter gastos com transporte. Para muitos, trabalhadores livres ou escravos de ganho, o trabalho tinha que ser procurado diariamente, e sob condições cada vez mais adversas, dada a crescente concorrência da força de trabalho imigrante. Estar próximo ao centro significava garantir a sobrevivência, mesmo porque, para grande parte da população ativa, constituída de vendedores ambulantes e de prestadores dos mais variados serviços, o trabalho não existia enquanto local, mas só aparecia como decorrência das demandas advindas da aglomeração de um grande número de pessoas e de atividades econômicas. E isto ocorria quase que exclusivamente no centro, razão pela qual o número de cortiços e quartos continuava a crescer nas freguesias centrais, não importando que as condições da morada fossem, aí, as mais precárias possíveis.
A verdade é que os cortiços podiam ser insalubres, mas eram também uma enorme fonte de lucros, e combatê-los poderia ser fatal em termos políticos, tamanhos eram os interesses envolvidos. A procura por esse tipo de habitação era tamanha que, mesmo quando combatidos pelo Estado, que passou a exercer um controle mais rígido sobre as habitações coletivas, ordenando o fechamento de várias delas, os cortiços reapareciam imediatamente em locais próximos. Eram considerados moradia da vagabundagem e de criminosos, pessoas sem moral e foco de epidemias.
A questão da salubridade nos cortiços ganha importância durante o Segundo Reinado, quando, em 1843, ocorre um movimento da Academia Imperial de Medicina de controle e higiene em reação ao episódio de epidemia de febre escarlatina na cidade. O cortiço mantém-se no centro da chamada “questão da habitação” por dois motivos: as constantes denúncias que o apontam como o epicentro mais comum das epidemias de cólera, de peste, de varíola e de febre amarela, que a partir de 1850 assolam periodicamente a cidade; em segundo, o fato de ser ele um foco potencial de agitações populares, residência que era de um número elevado de trabalhadores que viviam no limiar da subsistência. O movimento resultou em ações mais enfáticas de controle e/ou demolição dessas formas de habitação e ocupação dos morros da cidade.
A partir de 1870, a cidade do Rio de Janeiro começa a adquirir características de grandes centros urbanos, principalmente com a ampliação do mercado interno e a crescente presença de trabalhadores assalariados, forçando o Governo a agir na criação de infra-estrutura que acompanhasse o desenvolvimento industrial. Neste período, a cidade atrai numerosos investimentos de capitais internacionais interessados no setor de serviços públicos, como transporte, esgoto e gás, a partir de concessões do Estado. A Reforma de Pereira Passos vem para transformar o Rio de Janeiro numa capital condizente com as modificações econômicas que estavam acontecendo.
Era preciso criar uma nova capital, que simbolizasse a integração efetiva do País na divisão internacional do trabalho como grande produtor de café; que expressasse os valores cosmopolitas e modernos das elites nacionais. A “modernização” da economia urbana não condizia com uma área central ainda tipicamente colonial, com suas ruas estreitas e sombrias, onde se misturavam usos e classes sociais diversos; onde o capitalista se misturava com o operário, onde os edifícios públicos e empresariais eram vizinhos dos cortiços. Era preciso acabar com a imagem de que o Rio era sinônimo de epidemias, de insalubridade, e transformá-lo num verdadeiro símbolo do novo Brasil.
Com o objetivo de atingir essas metas, o prefeito Pereira Passos, nomeado para o cargo durante a presidência Rodrigues Alves (1902-1906), comandou, no curto período de quatro anos, a maior transformação já verificada no espaço carioca até aquele momento. Uma das características da Reforma Passos foi o investimento nas comunicações e circulações internas e externas, como a construção do novo porto do Rio de Janeiro e de avenidas, objetivando aceleração nas atividades econômicas e mobilização nas áreas proletárias e industriais. Os setores mais beneficiados foram, sem dúvidas, as indústrias, principalmente a de construção civil, que diminuiu custos na importação e exportação de seus produtos, ao desfrutar das novas vias de transporte que se abriam. Outra característica foi o controle urbanístico, que dava poderes ao prefeito para organizar a cidade e aumentar a carga tributária, permitindo vigilância até mesmo sobre a vida dos cariocas. Este controle podia ser observado na proibição de vendas e quiosques em vias públicas; na proibição de criação de suínos nas casas; na proibição da mendicância, além do impedimento de reformas nos cortiços ainda existentes
O empresariado nacional vinha sendo estimulado pelo novo governo republicano, via concessões e isenções, a subsidiar a construção de habitações higiênicas para seus operários, as chamadas vilas operárias. Obviamente, essa parceria possuía um interesse maior do que apenas a problemática da higiene: estava voltada para o controle dos trabalhadores, organizando suas vidas e vigiando, assim, o próprio movimento operário que ganhava força com as ideologias trazidas pelos europeus ao Brasil. Apenas uma minoria tinha efetivamente construído as chamadas “vilas operárias”, destacando-se aí quatro fábricas têxteis (Corcovado, Aliança, São João e América Fabril); um banco (Banco dos Operários); e duas companhias de construção civil em associação com o capital financeiro (Companhia Evonéas Fluminense e Companhia de Saneamento do Rio de Janeiro).
A reforma delimitou mais fortemente as áreas nobres das pobres, separando os locais de residência dos locais de trabalho propiciando o deslocamento do operariado para os subúrbios, com novas alternativas de transporte a menor custo. Em vista da grande oferta imobiliária nos subúrbios, as vilas operárias caem em desuso. O processo de retalhamento de terras nos subúrbios era comandado principalmente pelo pequeno proprietário de terra, que retalhava a sua “chácara” em lotes, vendendo-os em leilão. Atraídos pela perspectiva de lucros fartos e rápidos, diversos bancos e companhias nacionais e estrangeiros logo adquiriram grandes glebas de terra, convertendo-as em lotes à medida que as ferrovias iam sendo inauguradas ou melhoravam o seu tráfego suburbano. E faziam isso de forma totalmente nova: não mais abriam uma ou duas ruas; criavam bairros inteiros e vendiam os lotes a prazo. Além da ocupação dos subúrbios cariocas houve a proliferação das atividades nos municípios da Baixada Fluminense, que logo tiveram suas terras retalhadas em lotes considerados “urbanos”, mas que careciam de qualquer infra-estrutura básica. Disseminando a força de trabalho por subúrbios longínquos, carentes, e isolados uns dos outros, não só reduziu a vida do trabalhador a uma luta pela melhoria de transporte, pela instalação de infra-estrutura etc. como diluiu bastante a capacidade de mobilização popular, diminuindo, por conseguinte, o potencial de conflito urbano.
Cabe dizer que alguns bairros periféricos foram preservados dessa intensa reforma por ainda possuírem alta densidade demográfica e não serem alvo de qualquer interesse econômico, como Catumbi, Cidade Nova, Estácio, partes da Lapa, Gamboa, Santo Cristo e Saúde. Estes viriam a se tornar mais tarde algumas das grandes favelas da cidade, exatamente pela omissão publica e pela ausência de alternativas dos trabalhadores, Assim como o subúrbio, não receberiam atenção do governo para serviços estruturais básicos. Parte do território central, como morros com encostas íngremes, baixadas e margens de rios e locais inadequados, foram sendo ocupadas pelas populações mais pobres, se mantendo próximas das oportunidades de emprego no Centro do Rio.
A remodelação dos espaços trouxe melhorias somente para a elite local, que se beneficiou com a expulsão de antigos moradores (como os quilombolas) em áreas consideradas exclusivas das classes burguesas, como Copacabana e a Lagoa Rodrigo de Freitas. A conseqüência imediata da cirurgia urbana comandada por Passos no início do século foi, sem dúvida, a agudização de um problema que já era crônico e que tinha um alto poder de explosividade – o da habitação popular.
Atraindo grande quantidade de força de trabalho e não oferecendo espaços para a sua reprodução, a Reforma Passos viabilizou a proliferação de um hábitat que já vinha timidamente se desenvolvendo na cidade com sua informalidade e falta de controle - a favela, que logo se revelou uma solução ideal para o problema de habitação do proletariado se transformando em uma opção de moradia permanente. Começa a surgir espaços não formais, com baixíssimo nível de infra-estrutura mas próximo aos pontos de trabalho.
Por não serem considerados espaços valorizados pela construção imobiliária, até o início da década de 1930 as favelas ainda não se constituíam como os principais locais de moradia das classes pobres, mas também não recebiam atenção do Estado, que deixava à mercê da população resolver sua problemática habitacional. Ao mesmo tempo, o processo industrial crescia na cidade, expandindo-se para os subúrbios, que já contava com mão-de-obra morando nessa região, e inclusive contribuindo para a criação de novas favelas suburbanas. A formação geográfica da cidade também permitia esse crescimento.
Com as leis e medidas para beneficiar a classe trabalhadora, verifica-se o aumento do fluxo migratório do campo para a capital, adensando a ocupação nos subúrbios e favelas. Utilizava-se uma política habitacional que construía conjuntos habitacionais almejando votos e o aumento da popularidade do governo Varguista. Nesse cenário, as favelas se diversificam, sendo invadidas por uma quantidade de famílias provindas de diversas regiões, principalmente do nordeste brasileiro, não mais se restringindo aos trabalhadores locais, imigrantes e negros.
Os anos 1930 foram marcados pela valorização de um modelo urbanístico higienista de rejeição da cidade real, enfatizando o embelezamento e a monumentalidade. O tema favela só entrou propriamente na agenda oficial em 1937 com o Código de Obras da Cidade, prevendo a demolição destas áreas – que eram consideradas aberrações – e a remoção de seus habitantes para os parques proletários, numa atitude normatizadora e disciplinante do poder político. A inserção do tema favela no planejamento da cidade não se inicia pela preocupação com a condição de vida deste segmento da população, mas sim pelo desejo de liquidar o que era percebido como um incômodo. O “asfalto” passa a ser identificado com o mundo da ordem enquanto a “favela” com o mundo da desordem. O crescimento industrial, que gerava empregos, e os investimentos de infra-estrutura como transporte e saneamento para atender a essas atividades econômicas, foram fatores fundamentais para a explosão urbana, mas não beneficiava completamente os trabalhadores
O governo promove ainda, como forma de amenizar o déficit habitacional, o financiamento de lotes urbanos na periferia com juros baixos e amplas prestações. Essas atitudes fizeram diminuir o número de habitantes de favelas, causando uma falsa sensação, na cidade formal, de melhorias econômicas e sociais.
As décadas de 1940 e 1950 foram marcadas pelos movimentos migratórios originários fundamentalmente dos estados nordestinos, incentivados pelo acesso a bens de consumo, emprego e pela ilusão de uma vida melhor. Essa população veio a dar mais corpo a um excedente de mão-de-obra já existente nos grandes centros urbanos. Sem forma de sustento oficial e engrossando o mercado informal, essa população enfrenta graves problemas também com a habitação
Nos governos ditatoriais pode-se perceber um agravamento dos problemas urbanos, acarretando um aumento no déficit habitacional. A falência do modelo de política social vigente no período militar se relaciona com a incapacidade ou falta de interesse dos regimes autoritários em dar soluções para a desigualdade social. Alguns conjuntos habitacionais são criados na Zona Oeste, longe do Centro, atrelados as remoções das favelas. Entre 1962 e 1974, oitenta favelas são removidas.
Várias reivindicações surgem como a desapropriação de todas as áreas faveladas com reconhecimento de propriedade da terra para todos os moradores; urbanização das favelas; participação da Companhia Estadual de Águas e Esgotos – CEDAE – como responsável pelo abastecimento e pela distribuição da água e implantação da rede de esgoto nas favelas; responsabilização da Companhia Municipal de Limpeza Urbana – COMLURB – no que tange à coleta permanente de lixo; realização de obras de calçamento das ruas e becos; e garantia de que pelo menos 3% da renda bruta do Estado fosse aplicada nas favelas em obras de urbanização. Mas muito pouco foi efetivamente feito.
No período de redemocratização do país, a política habitacional do remocionismo foi abolida do discurso oficial porém o período foi marcado pelas práticas clientelistas, onde o favorecimento de políticos e candidatos traziam poucos ganhos efetivos para as comunidades. No final da década de 1980, com o alto índice de desemprego, especulação imobiliária, crescimento da informalidade e ausência de uma poliítica habitacional, crescem as antigas favelas e surgem novas. O crescimento da violência foi utilizado como empecilho à prática organizada dentro dessas comunidades e atendimento de demandas referidas à urbanização das áreas faveladas. No final do século XX, se estabelece a “crise da Segurança Pública” com territórios controlados por traficantes de droga, evidenciando os problemas acumulados nas primeiras ocupações além das questões ambientais que favorecem catástrofes naturais previsíveis. Esse espaços segregados nunca deixaram de ser utilzados como medidas eleitoreiras e os benefícios prometidos continuam sendo ansiosamente esperados por essa parcela da população sem sucesso.
Referências
Ronco, Adriana Patrícia; Leão, Otávio Rocha. Origem e expansão das favelas na cidade do Rio de Janeiro: processo histórico e cenário socioambiental. Rev. Augustus. V23. Nº46 p. 113-145. Jul/ Dez 2018. Rio de Janeiro
Abreu, Maurício de Almeida Da habitação ao hábitat: a questão da habitação popular no Rio de Janeiro e sua evolução. Revista Rio de Janeiro, n. 10 , maio-ago. 2003
Pereira, Mariana Figueiredo de Castro. A evolução habitacional-urbana na cidade do Rio de Janeiro
Correia, Fernanda Guimarâes. BREVE HISTÓRICO DA QUESTÃO HABITACIONAL NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
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