Em 1908, o mundo foi assolado por uma doença muito parecida com que estamos vivendo atualmente na pandemia de Covid-19. Era a gripe espanhola, considerada a maior epidemia da história.
Apesar do nome espanhola, essa gripe desconhecida foi registrada nos EUA em março de 1918, no campo de recrutas da cidade de Funston, no Estado do Kansas. A origem do nome “espanhola” teria então razões políticas – a Espanha não fazia segredos dos estragos que essa doença estava causando em suas terras, ao contrário dos outros países quecensuravam as notícias minimizando as consequências para manter a moral das tropas e esconder perdas nas suas capacidades bélicas. Fora isso, a Espanha se manteve neutra durante a Primeira Guerra Mundial e mostrava simpatia pelo governo alemão.
Com a chegada das tropas estadounidenses na Europa, esse continente, que já estava sofrendo com a devastação de uma Grande Guerra, começou a registrar casos dessa doença nos soldados que estavam no fronte doença essa muitas vezes confundida com dengue, tifo ou cólera. Em junho de 1918 foi identificada como um tipo de gripe de contágio acelerado e alta letalidade. A doença se espalhou por toda Europa chegando até a África, Ásia e Oceania.
A doença se disseminou em território brasileiro através dos navios vindos da Europa, principalmente aqueles com combatentes que adoeceram no campo de batalha. Um desses navios foi o Demerara, navio que fazia a rota Liverpool – Buenos Aires transportando passageiros, mercadorias e correspondências. Esse navio, em setembro de 1918, fez escala em Recife, Salvador e ancorou no Rio de Janeiro. Durante todo seu trajeto várias pessoas adoeceram. Não se tinha como realizar a desinfecção de todos os navios que aportavam na capital federal. A aplicação de quarentenas em embarcações era considerada antinatural, pois acarretava problemas políticos, econômicos e sociais. No Rio de Janeiro, o Demerara passou por uma desinfecção e seus passageiros, por exames. Só desembarcou quem estava assintomático...
Quando as primeiras notícias da gripe chegaram no Brasil, o governo tratou com descaso e em tom de brincadeira. Minimizaram a doença e diziam que era simplesmente uma gripe comum, benigna e passageira. Mas a gripe avançou rapidamente. Com a notícia das baixas nas Forças Armadas e a falta de conhecimento médio e científico quanto ao contágio, diagnóstico e tratamento, o governo federal se reuniu afim de estabelecer medidas profiláticas e de socorro para evitar a propagação da doença. O então presidente Venceslau Brás nomeou Carlos Seide como chefe de serviços sanitários da capital mas nenhuma medida foi suficiente para evitar a disseminação do vírus. Muitas foram as críticas recebidas pois não havia nenhuma estratégia para socorrer a população e enquanto isso, a doença se espalhava cada vez mais no Rio de Janeiro e nas outras cidades portuárias. Na época, não havia rádio nem televisão. Todas as informações e estatísticas eram dadas pelos jornais impressos. Infelizmente 65% da população era analfabeta e ficava sem tomar conhecimento de nada. A censura dos jornais foi solicitada em vão como forma de manter a ordem pública e evitar o pânico generalizado. O número de doentes cresceu e rapidamente os serviços de saúde ficaram sobrecarregados.
Charge da Gazeta de Noticias de 29 de setembro de 1918: livro "A Bailarina da Morte" é rico em imagens de época
Pânico – Capa da ‘Gazeta de Notícias’ do Rio de Janeiro, de outubro de 1918, mostra o caos com a gripe espanhola
A mortalidade era maior entre os pobres, moradores de cortiços, vilas operárias, numa faixa etária de 20 a 40 anos. Eram pessoas trabalhadoras, que se encontravam nas ruas mais expostas à condições precárias de trabalho e moradia. A cidade entrou em colapso sem medicamentos, médicos, hospitais. Alimentos e remédios foram superfaturados. Houve saques a armazéns.Casos novos surgiam em locais de grandes aglomerações como quartéis, escolas e fábricas. Houve suspensão de cerimônias fúnebres, adoção de isolamento social e paralisação de atividades produtivas com fechamento do comércio e de indústrias. Os serviços funerários não davam conta de tantos mortos e os cadáveres eram deixados nas ruas pois não haviam nem caixões nem coveiros suficientes para tantos sepultamentos
Enfermaria do Rio de Janeiro em 1918 (Foto: Wikimedia Commons)
Policiais brasileiros observam um cidadão doente em 1918. Foto: Fon Fon/Biblioteca Nacional
Os sintomas da gripe eram zoeiras no ouvido, surdez, cefaléia e hipertermias simples e evoluia para hemorragias, infecções pulmonares e intestinais, letargia, coma e morte O medo generalizado fez com que muitos fabricantes de remédios e de produtos de limpeza lucrassem financeiramente. Cientificamente não havia nenhum remédio específico para gripe espanhola, somente paliativos para combate dos sintomas e para aumentar a resistência do organismo. Eram aplicadas injeções de óleo canforado ( usado nos casos de diminuição das atividades cardíacas pela infecção), prescrito uso de benzoato de sódio como inibidor das atividades microbianas (o primeiro antibiótico, a peniclina, só surgiu em 1928) e acetato de amônia como diurético, além de codeína para tosse. O quinino foi considerado o medicamento top de linha para tratamento mesmo sabendo dos muitos efeitos colaterais danosos com a sua ingestão indiscriminada. O quinino foi o primeiro medicamento para tratamento de malária. Seu uso na malária foi substituído pelo uso da cloroquina pois possuia pouca ação e muitos efeitos colaterais. Quando usado na gripe espanhola era para amenizar os sintomas, e também era usado com “preventivo” pois combatia os “resfriamentos” do corpo, vulgo “friagem”, que facilitaria a infecção viral. Sua prescrição era publicada até em jornais da época e o medicamento era distribuído pelo governo.Receitas caseiras “milagrosas” também foram muito difundidas chegando a aumentar até o preço do caldo de galinhae do limão que era usado para gargarejos
Os que sobreviveram à epidemia guardam na memória os horrores vividos pela população de então.
Foi uma coisa pavorosa! Nunca, em toda minha vida, vi algo que chegasse perto daquela sassânida infernal! Não tinha na cidade, rua em quepelo menos em uma casa, a família inteira fenecera. Em muitas, todos da família estavam acamados, e cabia a quem pela rua passasse alimentar e dar remédios. Geralmente eram os coveiros, lixeiros e policiais que acudiam, dando remédio e alimentando, às vezes a família inteira que tinha caído doente. As pessoas colocavam panos negros nas janelas e portas das casas, para que eles soubessem que ali tinha gente doente e viessem socorrer. O pior de tudo é que estava morrendo gente aos borbotões, e o governo dizia nas ruas e nas folhas que a gripe era benigna. Certo dia, as folhas noticiaram mais de quinhentos óbitos, e mesmo assim a gripe era benigna, benigna, benigna. [...] As mortes eram tantas que não se dava conta do sepultamento dos corpos. Da janela, se via um oceano de cadáveres. As pessoas escoravam os pés dos defuntos nas janelas das casas, para que a assistência pública viesse recolher. Mas o serviço era lento, e aí tinha hora que o ar começava a empestear; os corpos começavam a inchar e apodrecer. Muitos começaram a jogar os cadáveres em via pública. Quando a assistência pública vinha recolher os cadáveres, havia trocas dos podres por mais frescos, era um cenário mefistofélico [...] (Depoimento de Nelson Antonio Freire. Apud GOULART, 2005)
No final de 1918, houve uma queda no número de casos e óbitos, mas logo no início de 1919, houve novo surto na Europa e também no Brasil. A “espanhola” vitimou até o recém-eleito Francisco de Paula Rodrigues Alves, que deveria assumir em novembro de 1918 o seu segundo mandato como Presidente da República. Adoentado, não pôde participar da cerimônia de posse, tendo seu vice, Delfim Moreira, assumido presidência interinamente. Rodrigues Alves morreu em 16 de janeiro de 1919, em decorrência de complicações da gripe. O carnaval de 1919 se deu com bastante comemoração pelo fim da Primeira Guerra e pelo fim da gripe espanhola mas já na quarta-feira de cinza havia notícia do aumento de número de casos na Europa e em março já estávamos com um novo surto, uma segunda onda epidêmica mundial. A gripe espanhola teve 3 ondas epidêmicas – a primeira entre março e julho de 1918; a segunda de agosto de 1918 até janeiro de 1919; e a terceira que foi de fevereiro de 1919 e em alguns lugares se estendeu até 1920. Estima-se que tenha morrido mais de 20 milhões de pessoas em todo o mundo na época. Matou mais que a Primeira Guerra que vitimou aproximadamente 8 milhões de pessoas, Num Brasil de 28.900.000 habitantes na época, foram 35.240 óbitos. Só no Rio de Janeiro foram 15 mil óbitos e 600 mil casos.
REFERÊNCIAS
Goulart, Adriana da Costa. Revisitando a espanhola: a gripe pandêmica de 1918 no Rio de Janeiro. Hist. cienc. saude- Manguinhos [online]. Rio de Janeiro, v. 12, n. 1, p. 101-142. Abr. 2005. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ arttext&pid=S0104- 59702005000100006&lng=en&nrm=iso.Acesso em: 25 de janeiro 2021. https://doi.org/10.1590/S0104-59702005000100006.
Bertucci-Martins, L. M. (2005). Entre doutores e para os leigos: fragmentos do discurso médico
na influenza de 1918. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 12(1), 143-157.
Santos, R. A. (2006). O carnaval, a peste e a ‘espanhola’. História, Ciências, Saúde-Manguinhos,
13(1), 129-158.
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