Roda de samba de Caribé
Segundo primeiro verbete do dicionário de língua banto de Nei Lopes (LOPES, 2005: p. 229-230), samba é definido como o nome genérico de várias danças populares brasileiras e a música que acompanha cada uma dessas danças. Não existem dados precisos sobre sua origem – se na Bahia, Sergipe ou Rio de Janeiro, trazida pelos baianos. O que se sabe é que foi uma criação artística e cultural de trabalhadores negros, escravizados ou não, de origem dos Bantos, com fortes características de musicalidade e movimentos similares a elementos culturais de origem africana – ritmo sincopado, o uso de instrumentos musicais africanos, relação com a religiosidade. No Rio, adquiriu características bem peculiares e mais elaboradas.
O Rio de Janeiro, no século XIX, era uma das maiores cidades negras , com 2/3 de sua população constituída de negros. Esse boom demográfico aconteceu devido as pressões contra o escravismo e declínio da produção fluminense de café gerando um aumento da migração para o Rio de Janeiro, cidade em ascensão devido ao aumento de investimentos na indústria e serviços. Com a abolição da escravatura, parte dessa mão-de-obra de ex-escravos sem qualificação, foi absorvida pelo cais do Porto, onde necessitavam de pessoas com disposição para o trabalho duro e que se sujeitasssem a baixos salários. Também se dedicaram ao ofício de serviços domésticos, sapateiros, alfaiates, açougueiros, pedreiros, marceneiros, trabalhos em pequenas ofici/nas de caráter artesanal e lojas, até mesmo pelas ruas, principalmente mulheres, com o comércio de alimentos em barracas. Segundo José Murilo de Carvalho, a consequência do rápido crescimento populacional foi o acúmulo de pessoas em ocupações mal remuneradas ou sem ocupação fixa. (CARVALHO 1987, p17)
Essa população, agora livre, se viu responsável pelo seu próprio sustento, incluindo sua própria moradia. Proliferaram cortiços, estalagens e casas de cômodos junto à área do cais do Porto ( Pequena África – Saúde, Gamboa e Santo Cristo) devido a proximidade com os locais de trabalho. Esses lugares se transformaram em redutos negros onde, nos breves momentos de repouso, ocorriam suas celebrações, festividades, danças e cantorias, com fortes características africanas e associadas à religiosidade. Foram os primeiros locais de criação do samba, onde expressavam seus ideais de resistência e reconstrução identitária.
Muitas baianas descendentes de escravos alojaram-se nestes bairros, sendo conhecidas como as Tias Baianas. É incontestável a contribuição das Tias do Samba, como eram conhecidas no final do século 19, para a sedimentação da cultura negra, principalmente com relação ao candomblé e ao samba (amaxixado) desta época. Tia Ciata ou Aciata - Hilária Batista de Almeida - (avó do compositor Bucy Moreira) morou inicialmente na Rua da Alfândega, 304 e posteriormente na Rua General Pedra, Rua dos Cajueiros e mais tarde na Rua Visconde de Itaúna, residindo na Cidade Nova entre os anos de 1899 e 1924. Ciata foi uma das responsáveis pela sedimentação do samba-carioca. Diz a lenda que um samba para alcançar sucesso teria que passar pela casa de Tia Ciata e ser aprovado nas rodas de samba das festas, que chegavam a durar dias. Várias composições eram criadas e cantadas em improvisos, caso do samba "Pelo telefone", considerado o primeiro samba, que viria a ganhar a assinatura de Donga (Ernesto Joaquim Maria dos Santos - 1890/1974) e Mauro de Almeida (jornalista conhecido como Peru dos Pés Frios - 1882/1956), samba para o qual também havia outras tantas versões. Outras tias também foram importantes: Tia Amélia (Amélia Silvana de Araújo - mãe de Donga), Tia Veridiana (mãe de Chico da Baiana), Tia Bebiana, Tia Rosa Olé, Tia Sadata, Tia Mônica (mãe de Pendengo e Carmem Xibuca) e Tia Prisciliana (mãe de João da Baiana).
(Foto: Divulgação do Acervo da Organização Cultural Remanescentes de Tia Ciata - ORCT)"
Conforme descreve Karasch (2000), a cultura escrava se desenvolveu no Rio de Janeiro na metade do século XIX, o que ele denomina como samba e canção. Os escravos sempre que trabalhavam seja em casa ou como carregadores e demais atividades na rua, estavam cantando em sua língua natal, quando não cantavam em grupo. Quando em grupo, tinha um que apresentava características de cantor principal, e os demais acompanhavam, com um tipo de refrão, o que era acompanhado por palmas e algumas vezes por instrumentos.. Segundo Aslaner (2009) eles procuravam cantar suas memórias e cotidiano, disfarçar o calor e o peso da mercadoria. Esse modo de manter sua memória e contar suas histórias provocava um fenômeno de troca de saberes através da oralidade musical.
No início do século XX, o Brasil experimentava um potencial de crescimento econômico. No Governo de Rodrigues Alves, houve um aumento do comércio externo. Buscava-se impulsionar a economia do país baseada na agroexportação do café e atrair capital estrangeiro. Isso gerou a necessidade de uma reforma na cidade do Rio de Janeiro. Pereira Passos , prefeito do Rio na época, ficou incumbido de realizar uma reforma urbana visando saneamento, urbanismo e embelezamento das cidades.
O maior empecilho de todos e uma barreira a seus ideais modernistas eram os cortiços. Os cortiços eram as moradias coletivas mais acessíveis a classe trabalhadora. de origem negra e considerada antro de vadios e malandros. Com o aumento populacional, houve um grande aumento dessas acomodações insalubres e sem saneamento básico o que favorecia o desenvolvimento de doenças contagiosas como varíola, tuberculose e febre amarela. A solução encontrada foi a derrubada dessas habitações de forma a controlar a propagação de doenças e promover reformas sanitárias.
A derrubada dos cortiços gerou à expulsão de uma população, de maioria negra e de suas práticas culturais. Seus costumes, considerados selvagens e bárbaros, geravam preconceito e desconfiança. O negro passou a ser uma ameaça a ordem social e política sofrendo segregação Além da derrubada de suas casas, foram proibidas diversas práticas e costumes dessa, população, como rodas de samba, capoeiras, comércio de ruas. Era a criminalização dos saberes negros. Objetivava-se um saneamento étnico com expulsão das práticas culturais africanas, afastamento de pessoas ditas com caráter indolente, maus hábitos e vícios. Segundo Sevcenko, a perseguição aos cortiços tinham como objetivo limpar a cidade dos habitantes indesejáveis, reservando o espaço do centro para as atividades comerciais e lazer da burguesia, o que se evidenciava também na perseguição às manifestações culturais como o samba, carnaval e outras festas
Retirados de suas áreas de convívência, essa população reconstruiu suas vidas em morros próximos e subúrbios distantes ao longo da linha férrea. Grande parte seguiu a malha ferroviária buscando moradia principalmente nas áreas de Madureira e Osvaldo Cruz. Era uma área de engenhos em decadência que logo foi ocupada por moradias de baixa renda ( começo dos loteamentos). Se criou um novo espaço urbano com atividades próprias, com pessoas solidárias na falta de assistência social, transporte e infra-estrutura, formando seus próprios comércios e criando seus próprios empregos. Para Milton Santos, a distância geográfica era duplicada pela distância política e estar na periferia significava dispor de meios menos efetivos para atingir as fontes e os agentes de poder (SANTOS 2008, p 118). Foram recriados meios de convívio e organização de religiões. Surgiram laços culturais e sentimentais com o subúrbio e os morros, territórios negros, onde se desenvolveu culturalmente o samba.
REFERÊNCIAS
KARASCH, Mary C. “A vida dos escravos do Rio de Janeiro 1808-1850”. Cia das letras. Rio de Janeiro 2000
ASLANER, Eminie Nike. “Herança francesa: Missão Artística Francesa”.
http://www.marc.apoio.com.br/documentos/herancafrancesa.doc acesso em 10 de novembro de 2009, às 21:32h.
CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
LOPES, NEY. Dicionário de Banto. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.
SANTOS, Milton, Metamorfoses do Espaço Habitado, 6 ed. São Paulo, Editora Edusp, 2008.
SEVSCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: Tensões sociais e criação cultural na Primeira República, 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003
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