Charge publicada na revista O Malho, em 1904, mostra a população contra as vacinas de Oswaldo Cruz.
No momento atual brasileiro, nos deparamos com diversos dilemas relacionados à pandemia de Covid-19 - esperança de vacinação, medo de infecção e reinfecção, hospitais lotados, questionamentos quanto eficácia e intenções das indústrias farmacêuticas, negacionismo, ideologias anti-vacinas, politização do uso de vacina. Conflitos que não condizem com todo conhecimento adquirido ao longos dos anos pela Ciência. Apesar de todos os estudos e toda evolução científica e tecnológica, estamos vivendo, incredulamente, uma nova Revolta da Vacina, num contexto diferente da revolta que aconteceu no início do século XX no Rio de Janeiro entre 10 e 18 de novembro de 1904. Para entendermos as motivações que deram origem a esse conflito é preciso analisar o contexto social, econômico e político do Rio de Janeiro na época.
O Rio de Janeiro em 1902 estava vivendo um período conturbado na política – transição presidencial com a saída de Campos Sales e primeiro Mandato de Rodrigues Alves. Era uma troca de poder entre dois representantes da elite cafeicultora. Foi a 4ª eleição presidencial e 3ª eleição direta no Brasil. Numa população iletrada só podiam votar homens maiores de 21 anos, que não fossem analfabetos, militares e religiosos. O voto não era secreto e existia grande influência dos coronéis que praticavam fraudes eleitorais descaradamente. O resultado das eleições não agradava nem militares nem monarquistas, nem industriais nem comerciantes e muito menos a população empobrecida que sofria sem perspectivas de mudanças em seu benefício.
Os paulistas pretendiam apresentar ao mundo um Brasil desenvolvido com um governo sólido, estável, dotado de instituições liberais, economia saudável e administração competente. O objetivo era atrair recursos para a cafeicultura, para a expansão das lavouras e recursos técnicos de infra-estrutura. Houve renegociação de dívida externa e com a carência de recursos foi necessário restringir ao máximo as despesas públicas, com dispensa maciça de funcionários e operários, suspensão de serviços e de pagamentos, criação de novos impostos e majoração dos existentes.
A crise econômica atingia outros setores econômicos. Os cafeicultores continuavam beneficiados e Rodrigues Alves só pensava em remodelar e sanear o porto e a cidade do Rio de Janeiro, tornando a capital do Brasil propícia a investimentos externos,
O porto era o mais importante do Brasil mas era antiquado e restrito, com pouca profundidade. Não havia locais adequados e em tamanho suficiente para armazenagem de mercadorias. O trajeto até as vias ferroviárias era feito por ruas aos moldes da cidade colonial, estreitas, tortuosas, escuras, com declives acentuados entre morros e áreas pantanosas Além disso tudo, a cidade era foco endêmico de uma infinidade de moléstias: febre amarela, febre tifóide, impaludismo, varíola, peste bubônica, tuberculose, dentre outras. Não havia saneamento básico e limpeza adequada.
A população aumentava a cada dia na cidade – migrantes internos, escravos libertos das fazendas do Vale do Paraíba, imigrantes estrangeiros. A enorme pressão por habitações levou os proprietários dos grandes casarões imperiais e coloniais da região central da cidade, a redividi-los internamente em inúmeros cubículos, que eram alugados para famílias inteiras. A necessidade de sobrevivência e as poucas ofertas de emprego geraram aumento da criminalidade urbana e mendicância.
Se fazia necessária, a reforma do porto e a remodelação da cidade. Para executar essa grande mudança foi indicado Francisco Pereira Passos para o cargo de prefeito do Distrito Federal e para assumir a coordenação dos esforços de desinfecção e profilaxia da capital, Osvaldo Cruz.
Oswaldo Cruz era médico, interessado em microbiologia, o que o levou a estudar em Paris no Instituto Pasteur. Foi diretor do Instituto Soroterápico Federal instalado na antiga fazenda jesuíta de Manguinhos e transformou uma simples fábrica de vacinas no maior Centro de Medicina Experimental da América Latina.
Osvaldo Cruz primeiro estruturou a campanha contra a febre amarela dividindo a cidade em dez distritos sanitários, A polícia sanitária impunha medidas rigorosas para o combate da doença multando e intimando proprietários de imóveis insalubres, criando brigadas mata-mosquitos limpando calhas e telhados, exigindo proteção de caixas-d'água. Tentou acabar com o mosquito numa época em que se achava que era o mal cheiro que causava a doença. Em seguida, o sanitarista iniciou sua luta contra a peste bubônica. A campanha previa a notificação compulsória dos casos, isolamento e aplicação do soro fabricado em Manguinhos nos doentes, vacinação nas áreas mais problemáticas e desratização da cidade.
Em 1904 – epidemia da varíola assolou a capital. O governo enviou ao Congresso um projeto de obrigatoriedade da vacinação antivariólica. Suas cláusulas previam vacinação para crianças antes dos 6 meses de idade e para todos os militares e revacinação de sete em sete anos. Impunham a exigência de atestado de imunização para candidatos a quaisquer cargos ou funções públicas, para quem quisesse se casar, viajar ou matricular-se numa escola. Davam ainda à polícia sanitária poderes para “convidar” todos os moradores de uma área de foco a se imunizar. Quem se recusasse seria submetido à observação médica em local apropriado, pagando as despesas de estadia. Em 1904, ocorre também a aprovação da lei que permite invadir, vistoriar, fiscalizar e demolir casas e construções em nome da remodelação urbana. As vítimas são fáceis de identificar: humildes de diversas matizes étnicas, massa trabalhadora, os desempregados, os subempregados. A população humilde é empurrada para a periferia da cidade ou para os bairros mais distante e degradados. Regiões desvalorizadas, por serem impróprias para construções, como os morros e os mangues, começam a se encher de casebres sem nenhuma forma de higiene e sem água corrente.
A oposição questionava a lei alegando que os métodos de aplicação da vacinação eram truculentos, os funcionários, enfermeiros, fiscais e políciais encarregados da campanha eram pouco confiáveis baseado no ocorrido na campanha anterior da febre amarela. Até mesmo Rui Barbosa, notável, culto e bem informado demonstrava insegurança quanto às características, à qualidade e à aplicação da vacina antivariólica prevista pela lei. Era difícil na época entender como um medicamento que continha o vírus protegeria a população e não iria disseminar a doença. Não havia qualquer preocupação com a preparação psicológica da população. A regulamentação da lei desencadeou a revolta.
Os jornais divulgavam diariamente denúncias de arbitrariedades cometidas pelos inspetores sanitários e de mortes atribuídas à vacina. A ideia de os médicos da Saúde Pública penetrarem, à força, nas residências para vacinar seus habitantes – amplamente explorada pela imprensa – inflamou a população. Folhetos eram distribuídos falando sobre os perigos da vacinação como a aquisição de doenças como a sífilis, tuberculose, gangrena,
erisipela, convulsões.
Houve oposição ao governo com a participação de grandes nomes da política na época como o médico Soares Rodrigues, Senador Lauro Sodré, deputado Barbosa Lima. As associações dos trabalhadores mobilizaram-se contra a proposta do governo.
Conspirava-se nos quartéis. Em janeiro, no aniversário da morte de Benjamin Constant, oficiais e alunos da Escola Militar já tinham saído em procissão positivista pela Avenida em construção, afrontando o governo, a reforma urbana e a vacinação obrigatória. Os militares prepararam um golpe de Estado para 17 de outubro, data do aniversário de Lauro Sodré. Informado da conspiração, o governo denunciou-a nos jornais, causando o adiamento dos planos. A 5 de novembro, foi fundada a Liga contra a Vacinação Obrigatória, no Centro das Classes Operárias. Seus dirigentes, Lauro Sodré, Barbosa Lima e Vicente de Souza, pronunciaram discursos inflamados para mais de 2 mil pessoas, conclamando-as a resistirem à vacinação obrigatória. O clima de tensão chegara ao auge. A revolta estava pronta para sair à rua. A 9 de novembro, o jornal A Notícia publicou um esboço do decreto de regulamentação. Suas medidas estarreceram a população.
Grandes ajuntamentos tomaram a Rua do Ouvidor, a Praça Tiradentes e o Largo de São Francisco de Paula, onde oradores populares vociferavam contra a lei e o regulamento da vacina, instigando o povo à rebeldia. As agitações foram organizadas pela Liga Contra a Vacina Obrigatória que tentava dirigir a turbulência da população revoltada. A Liga criava comícios, desafiava a proibição policial, instigava a população a resistir. As autoridades policiais recebem ordem de intervir sendo recebidos sob vaias e provocações. Quando tentava realizar prisões, começavam as pedradas e confrontos. Diante da reação popular foi ordenada a ação da cavalaria contra a multidão, de sabre em punho. Começavam a cair os feridos, o sangue manchava o calçamento das ruas, o tumulto se generalizava. Tiros e pedradas, partidos da população acossada, chovem sobre a brigada de policiais. O comércio, os bancos, bares, cafés e as repartições públicas fecham suas portas. Os grupos populares se dispersam pelas ruas centrais: Rua do Teatro, do Ouvidor, Sete de Setembro, Praça Tiradentes. O combate era intenso, em nenhum lugar a polícia conseguia assumir o controle da situação.
Por Desconhecido – Bonde virado na Praca da república
Por Desconhecido Barricada erguida no bairro da Saúde
Aproveitando-se das reformas então em curso para a abertura da Avenida Passos e da Avenida Central (atual Avenida Rio Branco), os populares se armaram de pedras, paus, ferros, instrumentos e ferramentas contundentes e se atracaram com os guardas da polícia. Essa, por sua vez, se utilizava sobretudo de tropas de infantaria, armados de carabinas curtas, e de piquetes de lanceiros da cavalaria. A população acuada se refugiava nas casas vazias que cercavam os locais em obras e se metia pelos becos estreitos, onde a ação militar coordenada se tornava impossível. O barulho do combate era ensurdecedor, tiros, gritos, tropel de cavalos, vidros estilhaçados, correrias, vaias e gemidos. O número de feridos crescia de ambos os lados, e a cada momento chegavam novos contingentes de policiais e de amotinados ao cenário.
A massa popular desfila pelas ruas centrais da cidade, gritando palavras de ordem, e se dirige ameaçadoramente para o Palácio do Catete, sede do governo da República. Batalhões de polícia fortemente armados são mandados para proteger a sede do governo e a residência do ministro da Justiça. A multidão dispersada passa a apedrejar os bondes e as lâmpadas da iluminação pública, destruir veículos, arrancar calçamentos, assaltar delegacias e casas de comércio A cidade começa a ser transformada numa praça de guerra.
Para os grupos populares não se tratava de selecionar líderes ou plataformas, mas lutar por um mínimo de respeito à sua condição de seres humanos. A revolta não visava o poder. Era somente um grito de indignação contra o constrangimento e humilhação a qual se sentiam submetidos. Queriam, através de gestos radicais, expor os seus direitos a dignidade. Infelizmente foram usados como massa de manobra.
Essa manifestação seria, do ponto de vista de seus líderes, um momento de reação contra os barões do café e os credores estrangeiros. Pretendiam usufruir dos tumultos para a realização de seu próprio projeto político. O projeto de assalto ao poder estava sendo encabeçado pelos militares, mas ironicamente era financiado às ocultas pelos monarquistas, que haviam sido excluídos da política republicana. Os monarquistas, incentivando o conluio e mantendo a agitação antigovernamental na imprensa, esperavam herdar o poder como os únicos elementos capazes de restaurar a ordem, já que o caos tinha se instalado por conta do confronto entre as duas facções republicanas. Jogaram, por isso, tanta lenha quanto puderam na fogueira da agitação popular.
O golpe estava previsto para 15 de novembro. Os militares e políticos conjurados reúnem-se, às pressas então, no dia 14, no Clube Militar, para deliberar sobre o curso a ser dado ao movimento. Decidem aproveitar-se do momento turbulento que mantinha ocupadas as atenções do governo para atiçar a mocidade das escolas militares e com elas marchar em direção ao Catete para depor o presidente e instaurar um novo regime. Mesmo com a escassez de munição das escolas, os cadetes se dispõem a marchar assim mesmo para o palácio presidencial.. O governo, já informado de tudo, reforçou de todas as formas que pôde a sua sede administrativa.
O governo enviou uma força de infantaria para dar o primeiro combate ao militares que vinham da Praia Vermelha. A tropa rebelde, informada da vinda do adversário, parou na Rua da Passagem à sua espera. Os alunos responderam ao fogo, seguindo-se um rápido mas intenso tiroteio às escuras, que deixou inúmeros mortos e feridos de ambos os lados. Em pouco tempo, as tropas governistas debandaram e os cadetes estavam dispersos. Os alunos retrocederam à Escola da Praia Vermelha, onde passaram a noite sob o fogo dos canhões e das metralhadoras depondo as armas na manhã seguinte. No dia 16, o governo assume uma iniciativa sensata: revoga a obrigatoriedade da vacina antivariólica. Dada a repressão sistemática e extinta a causa deflagradora, o movimento reflui, então, até a completa extinção, tão naturalmente quanto irromper.
A cidade, após a revolta, estava irreconhecível. Calçamentos destruídos, casas ruídas, janelas estilhaçadas, portas arrombadas, trilhos arrancados, restos de bondes, carros e carroças nas ruas, crateras de dinamite, ruínas de prédios incendiados, lâmpadas quebradas, postes, bancas, relógios e estátuas arrancadas, trincheiras improvisadas dos mais variados materiais, barreiras de arame farpado, perfurações de bala por toda parte, manchas de sangue, cavalos mortos, cinzas fumegantes.
Trinta mortos, 110 feridos hospitalizados, 945 presos, sendo 461 deportados. Os cadetes foram embarcados para o Rio Grande do Sul e distribuídos pelos postos da fronteira. Ao fim do ano, foram excluídos do Exército e a Escola da Praia Vermelha foi desativada. Foi sobre a população pobre que a punição foi mais brutal - os prisioneiros foram enviados à Ilha das Cobras, espancados, amontoadas em navios-prisão e, sem as mínimas condições de higiene e alimentação, deportados para o Acre, a fim de trabalhar nos seringais. Muitos não resistiram à viagem. Em 1905, todos os participantes da Revolta foram anistiados. Os cadetes retornaram às fileiras militares. Já os deportados para o Acre ficaram a própria sorte.
O que mais chamou a atenção no contexto da Revolta da Vacina é o caráter da repressão desencadeada sobre a população indigente da cidade. A violência policial foi intensa e ampla, não importando em investigar suspeitas ou conduzir os acusados aos tribunais. Os alvos da perseguição eram todos os miseráveis, carentes de moradia, emprego e documentos, que eram milhares. Não se fazia distinção de sexos, nem de idades. Bastava ser desocupado ou maltrapilho e não provar residência, para ser culpado.
Nos dois primeiros meses de 1907, somente duas pessoas morreram de febre amarela no Rio de Janeiro. Em março, Oswaldo Cruz informava ao governo o fim da epidemia. O sucesso de suas campanhas sanitárias mudou a opinião pública a seu favor. Nesse mesmo ano, o XIV Congresso de Higiene e Demografia de Berlim concedeu a Oswaldo Cruz e ao Instituto de Manguinhos a medalha de ouro pelas campanhas de saneamento do Rio. Quando em 1908, nova epidemia de varíola devastou o Rio de Janeiro, a população correu em massa para os postos de vacinação…
REFERÊNCIA
A Revolta da Vacina - Nicolau Sevcenko - Editora Unesp - 2018
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