Passando pela barra localizada entre duas montanhas muito próximas uma da outra, entra-se em águas tão calmas que mais pareciam pertencer a um lago. Na margem esquerda podia-se ver um rio de “águas maravilhosamente límpidas” que desce direto das nascentes das altas montanhas que cercam as terras baixas no entorno da baía. Um curso d’água que serpenteia por um lindo vale de árvores verdes e frondosas, abaixo do enorme maciço que domina o primeiro horizonte. Um topo de granito apontado para o céu é o último baluarte da serra que avança continente adentro em todas as direções de pura floresta. Ao longe, a paisagem hipnotiza ainda mais, infinitos morros e planaltos erguem-se entre as nuvens. Este córrego ia encorpando-se de pequenos afluentes até virar um riacho ao chegar na planície. Pouco antes de desembocar, o rio se dividia em dois: um braço seguia um curso direto à baía e outro corria em paralelo à praia, isolando grande porção de terra até convergir em direção ao mar mais à frente. A foz desse rio que podia ser percorrido por embarcações pequenas era o começo do trajeto que levava à mais conhecida das dezenas de tabas tupinambás que ocupavam milenarmente a terra onde hoje pulsa a cidade do Rio de Janeiro (RAFAEL 2019).
Essa descrição escrita no Livro Rio antes do Rio de Rafael Freitas da Silva mostra o paraíso que existia no Rio de Janeiro, especificamente no entorno da Baía de Guanabara na época em que os primeiros europeus chegaram por aqui. Nesse texto são relatados a Baía da Guanabara, o Rio Carioca e o Pão de Açúcar. Apesar do esquecimento, os primeiros moradores do Rio de Janeiro foram os tupinambás. Os antepassados dos tupinambás haviam conquistado a Guanabara pelos menos mil anos antes da chegada dos primeiros europeus ao Brasil. Acredita-se que durante a pré-história, comunidades do tronco linguístico tupi-guarani teriam se separado em algum lugar entre os rios Madeira e Xingu e partiram em levas migrando em direção sul
Grande leva de tupis-guaranis desceu pelo rio Paraná de onde vieram a se organizar nas tribos guaranis e karijós. Por sua vez, o ramo ancestral dos tupinambás teria seguido o curso do rio Amazonas até a foz, de onde vieram combatendo e ocupando o litoral do Nordeste e expulsando as tribos dos tapuîas, não tupis, “gente de língua estranha”, seguindo em direção ao sul até o Rio de Janeiro. O expansionismo dos tupinambás esteve possivelmente ligada ao domínio da agricultura.
Os tupinambás (chamados por eles mesmos de “tamoios”). buscavam as respostas cruciais da vida, iniciaram essa longa jornada em busca de um lugar conhecido entre eles como a “terra onde não se morre”, uma “terra sem mal”. Esse lugar era chamado de Gûaîupîá, ou Guajupiá, “a morada dos ancestrais”. No paraíso tupinambá descansavam os antepassados mais valorosos e memoráveis, local onde existiria uma fonte da juventude eterna que manteria todos na melhor idade. Para chegar nesse “éden celestial” e viver de novo junto aos pais e avós em harmonia e felicidade eterna, um tupinambá devia enfrentar muitas provas durante a vida e depois da morte, a fim de provar o seu caráter e valor espiritual. O desafio de vida era manter-se digno para garantir um lugar na eternidade. Atravessaram montanhas e planaltos, cruzaram rios, combatendo e expulsando pelo caminho quaisquer outros povos. Partiram em busca do território ideal para viver, um sítio onde só os mais fortes, corajosos, destemidos e que seguiam à risca os ensinamentos de Maíramûana e as tradições dos ancestrais, teriam lugar. As migrações representavam a constante busca a esses lugares considerados ideais para o desenvolvimento do estilo de vida. Os recursos naturais deviam ser abundantes e satisfatórios para todas as necessidades dos clãs. A Escola de samba GRES Portela chegou a usar esse enredo em no Carnaval de 2020.
A faixa costeira eles encontraram um clima ameno, razoável à agricultura e à coleta de fungos, plantas, raízes, frutos, seivas, insetos, larvas, mel, pequenos animais etc. Encontraram uma floresta riquíssima em utilidades naturais, superabundante em fauna e flora. Nos rios, baías, lagoas e praias havia uma variedade e fartura de peixes, sem falar nas ostras, mariscos, camarões, lagostas e outros frutos do mar. Como consequência dessa migração para novos habitats e dos contatos que fizeram no caminho com outros aborígenes, as levas de tupis migrantes se fragmentaram em unidades distintas, mas continuaram com a mesma herança cultural e linguística. Nenhum outro lugar poderia ser tão parecido com as descrições do Guajupiá eterno tupinambá do que as terras abundantes de recursos naturais de um Rio
O Rio de Janeiro ainda estava intacto. Eles chegaram e ficaram, ao longo das margens da Baía de Guanabara, posicionaram-se nos cursos dos riachos que nela desaguavam, ocupando também todo o interior. Adaptaram-se aos mangues, lagoas, rios, charcos e que atraía inúmeras espécies animais. Dominaram toda a extensão litorânea que ia desde o cabo de São Tomé, no atual município de Campos dos Goitacazes, ao litoral paulista, na altura da atual cidade de São Sebastião.
A unidade social mínima dos tupinambás era a família: pai, mãe, filhos, avós, tios, tias, primos e primas. A reunião de famílias solidárias entre si formava uma maloca, a casa coletiva da tribo. Várias malocas reunidas formavam uma aldeia ou taba.. Em geral, todos os membros de uma mesma taba agiam em conjunto. Cada taba tupinambá era formada por no mínimo quatro malocas, dispostas ao redor de um grande espaço livre, na forma de um pátio, chamado de okara. Era nessa praça que aconteciam as reuniões do conselho de chefes, os rituais religiosos, assim como os bailes e as festas. As aldeias eram circundadas por um sistema de fortificações, principalmente aquelas que ficavam em zona de fronteira com tribos inimigas. Para se protegerem, os tupinambás levantavam em torno das malocas uma estacada de troncos de palmeira rachados de mais ou menos 3,5 metros de altura A localização de uma aldeia dependia do provimento de água potável e da existência de lenha. Além disso, procuravam áreas próximas ao mar e aos rios, privilegiando uma boa pesca, disponibilidade de terras férteis para agricultura e a qualidade e a abundância da caça e das aves, nos bosques circundantes, onde encontravam as penas para seus adornos
Quanto maior a taba, maior o número de grupos guerreiros ali estabelecidos, ou seja, maior seria o seu poderio “militar”. Evidentemente, um bom estoque de guerreiros aumentava a possibilidade de um grupo ocupar as melhores terras. No Rio de Janeiro, as aldeias chegavam a medir 500 metros de diâmetro, o equivalente ao comprimento de cinco campos de futebol. Estimava-se em 6 mil a 12 mil as populações de algumas tabas
Os tupinambás tinham uma alimentação vasta e não dependiam exclusivamente das plantações de mandioca Complementavam com a pesca e a caça. Com os peixes, os tupinambás fabricavam um tipo de farinha de guerra que podia ser armazenada durante meses. Eles dominavam o cultivo de inúmeras plantas, sobretudo mandioca, aipim, milho, feijão e batata-doce – ingredientes que são a base da culinária popular brasileira. Também plantavam amendoim, inhame, abacaxi, banana, abóbora, pimentas, tabaco e algodão. As tabas mudavam de lugar mas, em geral, permaneciam no mesmo território enquanto ele fornecia o suficiente para a subsistência do grupo. Um fator importante para a migração estava relacionado com o envelhecimento do revestimento do teto das malocas. Feitos a partir de um tipo de palmeira chamada pindoba, eles se desgastavam e enchiam-se de parasitas e insetos, levando-os a construir novas moradias. Procuravam outro local não muito longe do original, estima-se entre 3 e 6 quilômetros de distância. À época da chegada dos navegadores europeus todo o litoral da Baía de Guanabara estava tomado por grandes tabas. O Rio de Janeiro nitidamente não era um espaço vazio a ser ocupado
Os tupinambás ficaram conhecidos amplamente por uma característica peculiar: a antropofagia, isto é, o ato de comer carne humana, também denominado canibalismo. É certo que os tupinambás não eram os únicos a exercer tal prática, mas em razão sobretudo dos relatos de alguns viajantes europeus que presenciaram os rituais de canibalismo dessa tribo, sua fama correu o mundo. O principal relato escrito sobre o canibalismo dos tupinambás é de autoria do aventureiro alemão Hans Staden (1525-1579). A prática do canibalismo entre as tribos indígenas brasileiras é interpretada por antropólogos e historiadores sobre vários ângulos. Primeiramente, deve-se destacar que o canibalismo tupinambá é caracterizado como “exocanibalismo”, isto é, essa tribo não devorava membros de sua própria comunidade. Geralmente os homens canibalizados eram guerreiros capturados em batalhas. O corpo desses rivais era comido em cerimônias com presença de dança e outros elementos ritualísticos. O canibalismo, na maioria dos casos, possuía algum fundamento mítico que o legitimava, como a necessidade de espantar a violência do grupo, da comunidade, através do sacrifício de membros de fora dela.
O calvinista francês Jean de Léry e o padre jesuíta José de Anchieta fizeram compilações importantes das tabas cariocas. O geógrafo da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Maurício de Almeida Abreu, a partir de um zeloso trabalho de pesquisa em cima das primeiras cartas de sesmarias da cidade, chegou ao incrível total de 84 nomes de aldeias tupinambás que, ao longo de centenas de anos, haviam resistido e gravitado no entorno da Baía de Guanabara. Grande parte dessas comunidades nativas procurava fixar-se mais próximo às margens da baía e em particular no lado ocidental, onde se localiza a cidade do Rio de Janeiro e cujo porto era ainda mais protegido. Nesta parte da baía chegaram a existir 15 tabas em janeiro de 1558. O mais aceito por estudiosos é que em geral as aldeias podiam ter em torno de mil pessoas cada, aproximadamente um contingente populacional de 80 mil tupinambás vivendo na Guanabara antes da fundação oficial da cidade.
Por isso, enquanto andamos pelas ruas do atual Rio de Janeiro, devemos pensar que estamos passando por cima dos túmulos de guerreiros ancestrais tupinambás e a maior parte dos bairros da atual metrópole carioca teve sua origem há mais de quinhentos anos em algumas das aldeias mais superpovoadas de todo o litoral brasileiro. Atualmente os povos Tupinambás vivem na vila de Olivença no estado da Bahia e no Baixo rio Tapajós no estado do Pará.
REFERÊNCIAS
Silva, Rafael Freitas da. Rio Antes do Rio. . Editora Relicário. 4ª edição. Rio de janeiro, 2019
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